Precisamos de tempo para salvar todo o ecossistema de saúde
Os cuidados intensivos chegam rapidamente à marca dos 750 internados, apenas por uma doença. A quem insiste em comparações descabidas com a gripe, tem de saber que 2014 foi o ano que a influenza causou mais pressão em cuidados intensivos, chegando a 98 doentes internados durante um período de 2 semanas.
“Nunca pensei que chegasse a este ponto”, oiço de forma recorrente. Recebo mensagens, telefonemas ou em rápidas conversas nos corredores, profissionais de saúde, de todas as classes e de vários locais do país, relatam uma situação semelhante: a enorme pressão a que os hospitais estão sujeitos. Nem nos piores momentos, tivemos um fluxo constante de doentes com elevados níveis de necessidades e requerem vários recursos diferenciados, desde humanos a materiais.
Os recursos materiais são esticados e improvisados ao máximo. Enfermarias transformadas em cuidados intermédios, blocos operatórios transformados em cuidados intensivos, qualquer espaço livre na urgência é aproveitado para um novo internamento. Reciclam-se camas que estavam para aproveitamento de peças, otimiza-se a rede de distribuição de oxigénio que não foi construída para esta enorme procura súbita e são retirados do armazém monitores antigos. Tudo é aproveitado ao máximo, mais houvesse, mais seria utilizado.
Mas tem um limite, até conseguimos, com boa vontade e imaginação, arranjar mais um espacinho para o novo doente com covid-19 que nos chega, mas inevitavelmente, a dada altura os recursos humanos estão esticados ao máximo e no limite da sua capacidade de resposta. A trabalhar com rácios apenas possíveis porque os nossos profissionais de saúde são bastante bons. Mas não somos máquinas, trabalhar dias a fio sempre a um elevado ritmo, sem ter gozado férias em 2020 e não podendo gozar agora, a perder folgas e com vários seguimentos de turno, terá certamente impacto na saúde mental de todos nós. Temo seriamente pela nossa capacidade de processar todo este esforço.
Os cuidados intensivos chegam rapidamente à marca dos 750 internados, apenas por uma doença. A quem insiste em comparações descabidas com a gripe, tem de saber que 2014 foi o ano que a influenza causou mais pressão em cuidados intensivos, chegando a 98 doentes internados durante um período de 2 semanas. Desde o final de novembro, que a Covid-19 provocou uma ocupação de cuidados intensivos superior a 500, atingindo nas últimas duas semanas, estes novos e preocupantes máximos históricos. Colocando em perspetiva, esta utilização de recursos transposta para janeiro 2020 e estaríamos com uma ocupação de 107%.
Nas urgências experienciamos uma situação dramática. Se nas unidades, o ambiente, apesar de pesado e trabalhoso, é controlado, nas urgências a porta da rua está aberta. Não se controla, minimamente, o fluxo de doentes que nos chega e somos obrigados a ter sempre algum tipo de resposta para oferecer. Isto provoca situações limite, em que num espaço físico planeado para 15 doentes com ventilação não invasiva, existam agora facilmente 40. Pela falta de vagas em cuidados intensivos ou intermédios, os doentes são forçados a permanecer mais tempo que o desejável nas urgências, em difíceis situações clínicas e logísticas, em que profissionais são forçados a desdobrarem-se para prestar os cuidados possíveis a todos.
Na comunidade a situação não é melhor. O volume das atividades relacionadas com a testagem, rastreamento e isolamento de novos casos é uma montanha que não para de crescer. O trabalho não tem fim à vista, o que torna desesperante o dia-a-dia dos profissionais que trabalham neste contexto. Sem esquecer que todas as restantes atividades dos cuidados de saúde primários ficam invariavelmente atrasadas. A base da nossa pirâmide da saúde está suspensa e presa pela covid-19.
Faço este relato não com o objetivo de assustar as pessoas. Aliás, quero deixar claro que os profissionais de saúde não têm desistido, têm tido um esforço inegável, desde a criatividade em arranjar soluções a força física para aguentar mais turnos, que se não tivéssemos esta força de trabalho, a situação estaria bem pior. Faço este relato na esperança de que todos façam o possível por reduzir ao máximo as oportunidades de transmissão do vírus. A utilização correta das máscaras de proteção, a higiene correta das mãos, redução da presença em espaços fechados e pouco ventilados, assim como, o distanciamento social adiando jantares e convívios nas próximas semanas.
Precisamos de tempo para salvar todo o ecossistema de saúde e para as vacinas começarem a exercer a sua influência. Todos temos um papel essencial a cumprir. Uns trabalham nos serviços de saúde, outros recolhem o lixo, outros fazem o pão e outros fazem teletrabalho. Todos são heróis. Todos são necessários. Sejam agentes ativos de saúde pública.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico