Ensino Superior: análise de políticas e medidas em tempo de emergência
Neste artigo aprecia-se, de forma crítica, as políticas e medidas que têm vindo a ser tomadas pelo Governo, de combate à propagação da doença COVID-19, na perspetiva do funcionamento das instituições do ensino superior.
Estamos a viver um período absolutamente crítico, com uma situação epidemiológica de grande intensidade e gravidade para a saúde pública, física e mental, a qual se projeta em outras consequências sociais, igualmente gravíssimas, associadas à crise da economia. Parece clara a dificuldade que governo, instituições, sociedade em geral, todos nós, sentimos em controlar esta crise pandémica.
Na “reduzida” contribuição do ensino superior para combater a doença, mantendo a atividade de formação dos jovens com garantia de qualidade, poder-se-á fazer melhor.
1. Documentos que enquadram a análise
O quadro legal de medidas a adotar, consubstanciado no Decreto n.º 3-A/2021 de 14 de janeiro, na sua redação atual resultante de uma primeira alteração aprovada no Decreto n.º 3-B/2021 de 19 de janeiro e uma segunda alteração aprovada no Decreto n.º 3-C/2021 de 22 de janeiro;
As correspondentes Recomendações do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superiores, de 22 de janeiro de 2021;
O Despacho aprovado pelo Reitor da Universidade Portucalense sobre “adaptação da atividade académica do ano letivo de 2020-2021 às medidas de emergência para combate à propagação da doença COVID-19”.
2. Factos que caracterizam a gravidade extrema do momento atual
O que escrevo nesta secção é do conhecimento de todos. Mas, deve ser escrito, para enfatizar o momento e para memória futura.
Não sou catastrofista, mas vivemos uma “situação de catástrofe da saúde pública” (numa classificação relacionada com o nível de funcionamento hospitalar atual) sem precedentes em muitos anos, seguramente que sem precedentes nesta III República.
Vemos trajetórias de continuado crescimento dos indicadores negativos (normalizados) que caracterizam a pandemia: i) novos casos de infeções; ii) novos internamentos; iii) novos internamentos em Unidades de Cuidados Intensivos; iv) número de óbitos. As trajetórias destes indicadores têm uma continuada derivada positiva. Os indicadores colocam Portugal no topo (negativo) dos países europeus;
Acabo de receber um Comunicado-apelo através, da Fundação para a Saúde, de personalidades da área médica , no qual se enfatiza “A resposta passa pela ação concertada de todos. Pelo cumprimento rigoroso de medidas e ações que reduzam abrupta e imediatamente a intensidade da transmissão do vírus na comunidade. É a única forma de baixar o número de doentes graves, travar a perda de vidas, e evitar o colapso do SNS e do sistema de saúde.”.
Diariamente, temos vindo a ouvir de responsáveis do Governo e das entidades da saúde apelos fortes para respeitarmos a letra e o espírito da legislação de combate à propagação da doença;
Diariamente, temos sido confrontados, de forma crescente, com apelos veementes de médicos para adotarmos medidas rigorosas de proteção sanitária, nomeadamente para respeitarmos as medidas de confinamento;
Diariamente, temos vindo a ouvir descrições de situações de catástrofe nos hospitais, vendo filas de ambulâncias a aguardar, durante horas, a sua vez para deixar os doentes.
Esta terça-feira, o governo anunciou a necessidade de as escolas se prepararem para ensino a distância a partir de 8 de fevereiro.
Esta terça-feira, pudemos ler que “Bruxelas pinta Portugal de vermelho-escuro e desaconselha todas as viagens não essenciais”;
Esta quarta-feira, a senhora ministra da Saúde falou da hipotética transferência de doentes para o estrangeiro.
Poderia dar muitos mais testemunhos, mas estes chegarão!
Os sinais exigem rigor máximo e expedito nas ações.
3. Legislação de emergência e orientações políticas para o ensino superior
No plano legal, as medidas de emergência passaram por duas alterações, entre o decreto n.º 3-A, original, de 14 de janeiro, e a segunda alteração em 22 de janeiro;
A referência direta, relevante, ao ensino superior limita-se ao artigo 31.º-A, n.º 1, alínea c), que menciona “As atividades letivas e não letivas presenciais das instituições de ensino superior, sem prejuízo das épocas de avaliação em curso”;
Este detalhe minimalista relativo ao funcionamento do ensino superior está associado a este facto simples: o ensino superior não é percebido como uma prioridade pela nossa sociedade, no que incluo os governos dos últimos anos.
Releva acrescentar que esta constatação, que é também minha, foi feita pelo Senhor Presidente da República, de forma muito realista, na sessão de encerramento da Convenção do Ensino Superior (um evento de má memória), promovida pelo CRUP e realizada no dia 7 de janeiro de 2019, no ISCTE.
A esta legislação junta-se a “Recomendação às instituições científicas e de ensino superior no contexto das medidas extraordinárias do estado de emergência” emanadas do Gabinete do MCTES, em 21 de janeiro, curiosamente imediatamente a seguir à comunicação oral do Senhor Primeiro Ministro sobre as novas medidas relativas ao estado de emergência, isto é, um dia antes da publicação do Decreto;
Abaixo comentarei aspetos vários da Recomendação, no que induz da prática das instituições.
4. O que não se fez para cuidar do futuro do Ensino Superior face à emergência
A emergência e correspondente necessidade de ação firme estão bem anunciadas desde abril de 2020!
Antecipo que não houve planos, e muito menos ações de contingência para preparar um futuro claramente anunciado.
Não posso deixar de remeter para um texto que escrevi no Público online, em 12 de novembro de 2020, em que identifico um conjunto dessas ações para preparar esse futuro:
A adequação do edifício jurídico para enquadrar o modelo educativo de aprendizagem híbrida;
A capacitação digital e tecnológica das famílias;
A capacitação do País em rede de alta velocidade;
A capacitação dos docentes a dois níveis: no plano da substância pedagógica e no plano tecnológico;
A capacitação formativa das instituições, igualmente a dois níveis: providenciando apoio especializado a docentes/estudantes (ou formadores/formandos); providenciando meios efetivos de apoio multimédia;
A capacitação tecnológica das instituições, também a dois níveis: em meios na sala de aula e (mais difícil de concretizar) na arquitetura dos espaços.
Estas ações deveriam ser (ter sido) tomadas em mãos por governo e instituições, conforme níveis de responsabilidade, tão rapidamente e efetivamente quanto possível:
Muito pouco foi feito, em alguns casos nada, e percebamos que é nesta capacidade de adaptação que reside a diferença entre os níveis de desenvolvimento dos Povos;
A consequência é que hoje continuamos a ter muitos dos problemas do 2.º semestre de 2019-2020, principalmente na questão da equidade de acesso aos meios de formação por parte de um número não despiciendo de estudantes.
5. O panorama atual – reação das instituições do ensino superior ao Decreto n.º 3-C e às Recomendações governamentais
As instituições, de um modo geral, suspenderam a atividade letiva de formação presencial (de aulas);
As instituições adotaram modelos diversos relativamente às atividades de avaliação (não tenho um levantamento completo): a maioria parece ter embarcado em avaliações a distância; outras em avaliações presenciais sem alteração de calendário; outras, muito poucas, como a Universidade de Lisboa, a Universidade Lusíada e a minha Universidade Portucalense optaram pela recalendarização da atividade escolar, empurrando para mais tarde os períodos alargados de avaliação presencial.
Merece apreciação este tema importantíssimo da avaliação de conhecimentos.
5.1. Quadro de apreciação - condições de avaliação
A avaliação de conhecimentos é parte integrante fundamental de todo o processo de aprendizagem, importando realçar que a perceção pública da sua fidedignidade é determinante para a confiança da Sociedade na prossecução da missão da Instituição. Nesta perceção é fundamental que os modelos de avaliação respeitem um conjunto transversal de princípios:
(i) verificação individual fidedigna de identidade e autoria dos estudantes;
(ii) garantia de equidade no acesso aos meios;
(iii) racionalidade na adaptação à diversidade curricular;
(iv) respeito pela visão pedagógica dos docentes; e, sempre,
(v) exigência de qualidade.
É à luz deste quadro, particularmente dos dois primeiros pontos, que analiso a diversidade de modelos de avaliação, suscitada pela adaptação ao quadro legal deste período de emergência.
5.2. Continuação de avaliação presencial, dentro do calendário letivo definido no início do ano
A legislação de emergência parece dar abertura e cobertura legal a este modelo, o que é reforçado por uma das possíveis leituras da Recomendação do Gabinete do MCTES.
Independentemente desta incompreensível abertura legal, temos a situação paradoxal de tal prática chocar com todas as diretrizes, diretivas e apelos feitos pelos mais altos responsáveis do País, bem como pelos Responsáveis e principais atores (médicos e enfermeiros) da área da saúde.
A atividade presencial é oposta à diretriz de confinamento – exige deslocação e atividade coletiva de estudantes, docentes e não docentes;
Não está em causa que no plano académico fosse ou seja interessante e bom para os estudantes a manutenção dos calendários.
Está em causa a hierarquia de valores humanos, a postura comportamental, num período limitado no tempo, em que todos, sem exceção, se deviam integrar;
Olho com expectativa e preocupação para as (potenciais) consequências da adoção deste modelo de risco pouco razoável.
5.3. Adoção (generalizada) de modelos de avaliação a distância
A grande questão que coloco, numa potencial adoção generalizada de avaliações a distância é a da fidedignidade das avaliações.
Há indicadores inequívocos de que ainda não temos, ou de forma generalizada ainda não existem, meios para garantirem essa necessária verificação individual fidedigna de identidade e autoria dos estudantes.
Numa publicação recente no Times Higher Education apresentam-se dados muito preocupantes sobre a dimensão da fraude, sendo também interessante, mas principalmente muito preocupante, perceber a parafernália de meios de vigilância que vão sendo utilizados de forma crescente, numa atmosfera de Big Brother totalmente desaconselhável.
É assim que, havendo exceções, mas em termos gerais, me parece:
É obviamente aceitável ter provas orais a distância, desde exames orais formais, à discussão de trabalhos submetidos nas plataformas de gestão de aprendizagem (tipicamente o Moodle);
Haverá alguns modelos de provas de avaliação escritas que proporcionam um controlo adequado;
Mas, em muitas outras situações, esse controlo escapa.
Sendo que é difícil falar em abstrato e que tenho conhecimento de que algumas instituições usam meios e protocolos razoavelmente sofisticados, sou claramente cético relativamente à massificação deste modelo, nesta fase ainda incipiente de meios e instrumentos digitais para este fim. Não garante fidedignidade.
5.4. Reprogramação de atividade – recalendarizando, atrasando os módulos de avaliação em regime presencial
Resta a solução da reprogramação de atividade, com:
Manutenção de toda a atividade de formação, não presencial, a distância;
Manutenção de toda a atividade de avaliação que se considere poder ser realizada de forma fidedigna a distância;
Atraso dos módulos de avaliação em regime presencial, tipicamente para maio; e
A necessária antecipação do início da atividade letiva deste 2.º semestre, por forma a tornar exequível o calendário global.
Parece-me ser a solução que melhor serve os interesses da Sociedade na obrigação da Universidade em garantir o controlo de qualidade da sua atividade de formação.
Deveria ser a solução generalizadamente adotada
É claro que, se a pandemia se prolongar nestes níveis de gravidade descontrolada, teremos que equacionar outros modelos de atuação, sopesando no devido momento os prós e contras.