É desta vez que vamos ter uma revisão constitucional?
Sabe-se que em regime de estado de emergência não pode haver revisão constitucional. Mas vamos acreditar que depressa sairemos desta brutal situação e possamos enfim promover um amplo debate nacional sobre estes e outros temas para que a Política se possa reconciliar com muitos dos portugueses que dela se divorciaram para sempre.
1. O Presidente da República reeleito – a quem dirijo as justas felicitações – aludiu no seu discurso de vitória à revisão das leis eleitorais, num contexto que é também de revisão constitucional.
Foi bom que o tivesse feito porque não só apela ao entendimento dos agentes constitucionais que protagonizam essas mudanças – os deputados da Assembleia da República – como chama a atenção para a urgência da matéria, priorizando-a no debate político.
Mas a revisão das leis eleitorais – ou a revisão constitucional, por causa dela e além dela – neste momento que estamos a viver na III República é muito mais do que apenas isso, considerando ainda o dramatismo da situação da pandemia que nos assola.
Na verdade, nunca se discutiu tanto a Constituição como nos últimos meses, quer a propósito das limitações que foram impostas aos nossos direitos fundamentais, quer a respeito da perceção que se ganhou daquilo que urge reformar no texto constitucional a partir desse contexto.
2. Assim sendo, são três os grupos de temas que podem fundar um debate de revisão constitucional, e isso independentemente dos resultados a que se possa chegar:
- os temas “imediatos”, ligados às dificuldades do processo eleitoral, com as eleições autárquicas no horizonte próximo;
- os temas “circunstanciais”, relativos à reformulação do direito constitucional de exceção que a pandemia passou a exigir; e
- os temas “eternos”, atinentes a múltiplas reformas, de que toda a gente fala ou até quer, mas que ninguém faz, as quais se apresentam hoje com uma importância estrutural e inadiável.
Algumas reflexões sobre todos eles.
3. Estou em crer que há mudanças a introduzir na legislação eleitoral que não carecem de revisão constitucional, mas algumas delas sempre a justificariam, até para não restarem dúvidas acerca da sua plena legitimidade jurídico-constitucional.
Quais são elas?
Desde logo o problema de o voto ter de ser presencial, regra que a Constituição tem para a eleição presidencial aplicável aos eleitores recenseados no território nacional, havendo também a obrigação do voto presencial nas outras eleições, com a exceção do voto dos emigrantes registados fora de Portugal.
Não creio que fosse prudente dar a possibilidade de todos os cidadãos poderem votar por correspondência na medida em que tal método comportaria enormes riscos, além de alhear ainda mais os votantes do dia mais importante da democracia representativa, que é o sempre o dia das eleições.
A alternativa será a de multiplicar as oportunidades do voto antecipado, se bem que esta esteja longe de ser uma boa solução para generalizar porque fratura a unidade da campanha eleitoral e introduz uma “eleição aos soluços” porque o colégio eleitoral ficará mais dividido do que nunca quanto ao princípio da simultaneidade do voto.
Este é um valor a preservar em nome da igualdade e da verdade eleitorais porque só assim todos sabem – e no mesmo “tempo” – os argumentos eleitorais das candidaturas, uma vez que só terminada a campanha se encerra o debate de ideias que supõe precisamente um período especial designado “campanha eleitoral”.
Do que se tem falado mais é do voto eletrónico, que tem o mesmo enquadramento do voto por correspondência, porventura mais seguro, mas que deve ser encarado definitivamente, partindo da lição que os bancos nos possam dar acerca da segurança que conseguem ter na preservação dos seus ativos financeiros, ou bem arriscado considerando a facilidade com que os vírus informáticos nos destroem os computadores…
4. Esta infelizmente longa experiência de se viver em direito constitucional de crise veio mostrar algumas anomalias do desenho do estado de exceção português, algumas já detetáveis quando da aprovação da Constituição em 1976, outras que só a experiência da sua aplicação prática tornou patentes.
Há aspetos formais e organizatórios óbvios, que se relacionam com o período por que o estado de exceção pode ser decretado em cada vez, ou com a articulação dos níveis de decisão normativa do Presidente da República e do Governo, ou ainda com a falta de poderes legislativos de necessidade por parte da Comissão Permanente da Assembleia da República.
Mais sérias são as dúvidas que se colocam quanto ao figurino dos dois tipos de estado de exceção que temos, os quais – embora incluam a pandemia como uma das suas causas e sendo esta, sem dúvida, uma calamidade – não estão funcionalmente aptos a cobrir um prolongado efeito suspensivo de certos direitos, que aproxima esta vicissitude de uma “restrição suspensiva atípica” de direitos fundamentais.
Tem-se falado, a este propósito, da inoportunidade de em plena pandemia se operar a adequação da legislação existente quanto ao estado de emergência sanitária, que está, aliás, versado no Regulamento Sanitário Internacional de 2005 da OMS, e ao qual Portugal se vinculou.
É argumento de árdua compreensão: não só o Parlamento tem durante todos estes meses legislado sobre assuntos muito menos relevantes e nada urgentes – e não consta que esteja assoberbado de trabalho – como não se julga que tal legislação seja de difícil elaboração e muito menos só acessível a algum “iluminado constitucionalista”, sendo certo que basta juntar as opiniões de muitos dos meus colegas para se perceber instantaneamente o que é preciso fazer. Portanto, um não argumento…
5. Mas ainda há os temas “eternos” da revisão constitucional, que poderiam encimar um renovado e substancial debate nacional sobre as reformas de que Portugal precisa.
Isso até teria a vantagem de ser uma boa “válvula de escape” para aliviar a pressão das vozes tonitruantes que clamam por uma IV República, considerando o presente regime constitucional esgotado e obsoleto.
É certo que não há nenhuma ordem constitucional que não acuse o desgaste do curso da história e as mudanças constantes da vida política e economia, que se tornaram vertiginosas com o III milénio, a globalização e digitalização.
Nem deixa de ser fantástico que a Constituição tivesse mesmo conseguido responder – e muito bem – a todas essas exigências na modificação de aspetos centrais do seu articulado:
- na introdução do Tribunal Constitucional substituindo o Conselho da Revolução;
- na desnacionalização de empresas na Constituição económica após a adesão de Portugal à Europa Comunitária;
- na previsão do referendo político-legislativo nacional quanto às decisões fundamentais da vida social; ou
- na ampliação da autonomia regional, que carece de renovado empenho.
6. Porém, há anos a esta parte, parece que se perdeu o fulgor do ímpeto reformista de que a Constituição carece, enredando-se os partidos, sistematicamente, em estranhas opções táticas de curto alcance, como que sempre “à espreita” de uma melhor oportunidade, fugindo de encarar o assunto de uma vez por todas.
Os problemas de que padece o sistema político-constitucional são reais e assentam no crítico distanciamento da sociedade em relação à política, na repulsa que excelentes quadros têm quanto ao exercício de cargos públicos (conheço muitos) e na captura da atividade política pelos mais variados, opacos e inconfessáveis interesses, desde os económicos aos jornalísticos, passando pelos político-ideológicos transnacionais.
No plano discursivo, o desinteresse pela Política é uma conclusão insofismável para quem estuda este fenómeno no plano da Sociologia Política, para cujo resultado muito contribui (i) tanto a boa dose de intolerância que se esconde no “politicamente correto” (ii) como ainda – embora de um jeito mais subtil – o discurso teatral e disfarçado, tantas vezes “fofinho” (apenas próprio para as crianças até 12 anos), de que tudo está bem, e de que tudo vai correr ainda melhor, quando toda a gente sabe que as coisas vão de mal a pior…
Nesta matéria, são muitos os temas, alguns deles já anunciados há quase 30 anos: desde a reforma eleitoral autárquica (nunca feita) até às alterações na justiça, passando pela regionalização administrativa do continente ou na valorização de diversos instrumentos de maior participação dos cidadãos, como o fim do monopólio dos partidos no acesso à Assembleia da República, a redução do número dos seus titulares, a introdução do voto proporcional personalizado ou o exercício livre da vontade dos deputados para não serem a “boca que pronuncia as palavras do seu partido”.
7. Sabe-se que em regime de estado de emergência não pode haver revisão constitucional, nos termos do art. 289.º da Constituição.
Mas vamos acreditar que depressa sairemos desta brutal situação que força a decretação daquele tipo de estado de exceção e promover um amplo debate nacional sobre estes e outros temas para que a Política – na sua dimensão nobre, necessária e de serviço, procurando o bem comum – se possa reconciliar com muitos dos portugueses que dela se divorciaram para sempre.