Habitação para todos na União Europeia
Este é um momento histórico para o direito à habitação e para a cidadania europeia, em que a UE reconhece finalmente na sua agenda a questão da habitação enquanto direito humano e social para todos.
No passado dia 21 de Janeiro de 2021, à tarde, foi aprovado no Parlamento Europeu o Relatório da Iniciativa “Acesso a habitação digna e acessível” (2019/2187(INI)), por uma maioria de 352 votos a favor, 179 contra e 152 abstenções. O relatório foi produzido no âmbito da Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais, tendo como relatora Kim Van Sparrentak, que se destacou também recentemente por ter produzido algum debate em torno da regulação do arrendamento de curta duração (alojamento local, como é conhecido em Portugal) em espaço europeu, acirrando os lobbies e grupos de pressão do setor económico, mas também do direito à habitação.
O relatório considera que o acesso a habitação adequada é um direito fundamental que deve ser considerado como condição prévia indispensável para o exercício de outros direitos fundamentais (segurança, educação, saúde, emprego…), assim como para o acesso a estes, e para uma vida humana digna.
Reforça também que as autoridades nacionais, regionais e locais dos Estados-membros têm a obrigação de definir a sua própria política de habitação e de tomar as medidas necessárias para garantir o respeito deste direito fundamental nos respetivos mercados habitacionais. Salienta que a União Europeia (EU) e os seus Estados-membros têm a obrigação de garantir o acesso universal a uma habitação digna e a preços acessíveis em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Carta Social Europeia e no Pilar Europeu dos Direitos Sociais, na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e na agenda dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
No importante documento, a questão da habitação é cruzada com a política de emprego, a segurança social, a questão das finanças públicas e investimento, a pobreza energética e as alterações climáticas, numa visão integrada e complementar, à luz da afirmação da necessidade imperiosa de garantia deste direito humano. A União reposiciona, assim, a habitação enquanto serviço de interesse económico e social geral tal como previsto nas legislações e nas práticas nacionais em conformidade com os seus Tratados, a fim de promover a coesão social e territorial no espaço europeu. Classificando a habitação enquanto serviço de interesse geral, sujeita todas as questões nesta matéria a obrigações específicas de serviço público, respondendo às necessidades dos cidadãos vulneráveis, em conformidade com os princípios da solidariedade e da igualdade de acesso.
No tocante à exposição de motivos, parte de um conjunto alargado de considerandos relativos à crise de habitação contemporânea. Destaca que os preços da habitação têm aumentado de forma constante de ano para ano e a um ritmo mais rápido do que o rendimento disponível das famílias; ao mesmo tempo que a habitação é, atualmente, a rubrica de despesas mais elevada para os cidadãos europeus. Calcula que o mercado da habitação gere cerca de 25 mil milhões de euros sendo, por conseguinte, um fator de criação de emprego e uma força motriz da atividade económica que influencia a mobilidade laboral, a eficiência energética, a procura e a resiliência das infraestruturas, os transportes sustentáveis e o desenvolvimento urbano, entre muitos outros domínios da atividade económica e humana. Revela que a acessibilidade dos preços da habitação e as condições de habitação dos proprietários e arrendatários de baixos rendimentos se deterioraram nas últimas décadas; e que mais de 1/3 das famílias em risco de pobreza consagram quase metade do seu rendimento disponível para despesas de habitação. Tem ainda em conta que o número de pessoas em risco de pobreza na UE ascende a 156 milhões, se se tiver em conta os custos da habitação.
É também sensível aos últimos dados recolhidos após o início da pandemia de covid-19, indicando que, a médio prazo, a recessão económica e a perda de postos de trabalho podem aumentar ainda mais o peso excessivo das despesas com a habitação e o número dos sem-abrigo na UE. Aliás, à exceção da Finlândia, o relatório destaca que o número dos sem-abrigo está a aumentar em toda a União Europeia. Todas as noites, pelo menos 700.000 pessoas dormem na rua na UE — mais 70% do que há uma década. Reconhece-se que a crise pandémica agravou a insegurança habitacional, o sobre-endividamento e o risco de despejo e de ficar sem casa e expôs a situação precária de muitas pessoas, em especial os idosos, mas também os trabalhadores migrantes, que não têm acesso a uma habitação que satisfaça os requisitos de saúde e de distanciamento social.
Os Estados-membros devem também ser autorizados a investir mais na habitação social, pública e a preços acessíveis ao abrigo das regras orçamentais da UE. É preciso que este aspeto seja incluído na reforma do Pacto Europeu de Estabilidade e Crescimento. O financiamento de habitação social, a preços comportáveis, salubre, adequada e energeticamente eficiente para combater o fenómeno dos sem-abrigo e a exclusão habitacional também deve ser assegurado através do orçamento da UE.
Este é um momento histórico para o direito à habitação e para a cidadania europeia por dois motivos: primeiro, porque a UE reconhece finalmente na sua agenda a questão da habitação enquanto direito humano e social para todos. Em matéria de habitação é uma tomada de posição institucional inovadora, pois a UE caracteriza a sua política, nestas questões, por relegar para os Estados-membros a gestão desta pasta, sendo que são estes que têm competências próprias para definir, planear e intervir com políticas de habitação nacionais. O texto agora aprovado pelos eurodeputados apela aos Estados-membros para a promoção de medidas que permitam corrigir as desigualdades no mercado da habitação. A Comissão terá de reagir a este relatório de iniciativa e propor medidas legislativas e financeiras adequadas a acordar e aprovar pelos Estados-membros da UE.
Segundo, porque nesta proposta de resolução convergem as vontades e interesses de muitos atores e stakeholders representantes legítimos dos cidadãos europeus e do setor social da habitação, incluindo a participação ativa portuguesa da AIL – Associação dos Inquilinos Lisbonenses, enquanto membro integrado no grupo de trabalho de peritos da IUT – União Internacional de Inquilinos, na iniciativa europeia “Parceria para a Habitação” da Agenda Urbana da UE. Num comunicado conjunto liberado ao fim do dia de aprovação do relatório, pela IUT e pela AIL, assinalou-se que a presidência portuguesa na UE “tem a oportunidade única, em conjunto com todos os Estados-membros e a Comissão Europeia, de fazer da habitação a preços acessíveis uma das pedras angulares do Plano de Ação da Cimeira do Ano Europeu dos Direitos Sociais a realizar em maio de 2021”.
Estamos conscientes que, tanto a nível local e nacional, como a nível internacional, a nossa participação como cidadãos em todas as iniciativas de democracia participativa articulada com a democracia representativa surte efeitos concretos que afetam a vida de milhões de seres humanos. Este é um grande passo para o direito à habitação no espaço da UE, mas também para a cidadania europeia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico