Luísa, Vítor, Pedro, Helena, Luís, Valério. Vidas que perdemos para o coronavírus
Desde que começou, a pandemia já fez quase 10 mil mortos, só em Portugal. Estes são os nomes e os rostos de alguns deles.
Luísa, Vítor, Pedro, Helena, Luís, Valério. São mais do que nomes — muito mais do que números — as pessoas que morreram com covid-19 em Portugal, numa lista que continua a aumentar todos os dias, a um ritmo cada vez mais descontrolado. Ao fim de dez meses de um caudal ininterrupto, galopante, de estatísticas sobre vítimas mortais, internamentos e novos casos de contágio, o PÚBLICO propôs-se dar rosto e contar algumas das histórias daqueles que perdemos para a pandemia — e são quase 10 mil —, numa homenagem que recupera pedaços destas vidas bruscamente interrompidas, aqui trazidos pela voz de amigos e familiares.
“A Luísa era o meu anjo”
Luísa da Conceição Pereira
n. 19 de Maio de 1965
o. 4 de Abril de 2020
Ainda hoje acontece ao fotojornalista Paulo Pimenta acordar a pensar que tem de ir buscar a irmã. “Depois lembro-me: ‘Não, ela já não está cá...’ E sinto-me muito revoltado, porque a Luísa estava lá no cantinho dela, sossegada, e este vírus foi ter com ela. Há muitas maneiras de partir e esta foi muito injusta”, diz Paulo, cuja irmã, Luísa da Conceição Pereira, portadora de trissomia 21, morreu com covid-19, no dia 4 de Abril do ano passado, depois de ter sido infectada na instituição que a acolhia, em Gondomar.
“Num espaço de cinco dias, ela, que nem gostava de estar em lugares com muita gente, partiu. E por isso é que me custa tanto estar na linha da frente, estar perto dos cenários em que se combate a pandemia e do medo, e ver pessoas que continuam a agir como se isto fosse só mais uma pneumonia, uma coisa que só acontece aos velhinhos. Esta pandemia levou-me a pessoa mais bonita que alguma vez tive ao meu lado, aquela com quem fui mais feliz, e que me ensinou a gostar da vida simples, sem filtros.”
Desde que há 13 anos a mãe de ambos morreu, Luísa foi acolhida na instituição aonde todas as semanas, e, quando conseguia, mais do que uma vez por semana, Paulo a ia buscar. “Costumava levá-la a passear à beira-mar, em Miramar, e ela ensinou-me a saber estar comigo, relaxado e sem stress. A Luísa era o meu anjo. Pouco comunicava, tinha trissomia e não desenvolveu muito as capacidades intelectuais, mas criámos muitas cumplicidades. Nem que fosse no silêncio máximo, havia sempre uma vida fantástica entre nós os dois. E isso faz-me mesmo muita falta: a troca de olhares, as mãos dela na minha cara, os abraços. Sinto saudades sobretudo dos abraços, porque ela abraçava-me a sério.”
Habituado ao frenesim das redacções, era com Luísa que Paulo desligava do mundo. E garante que lhe fazia tanto bem a ela como a ela ver-lhe a felicidade exuberante sempre que a levava ao cabeleireiro para arranjar o cabelo e pintar as unhas. “Ela era feliz e muito bem tratada pelas pessoas da instituição, mas esse momento era o ponto máximo da semana para ela. A cabeleireira, a dona Manuela, tratava-a como a uma princesa e, quando saía, Luísa fazia questão de mostrar as unhas a todas as pessoas com quem nos cruzávamos, pintadas da cor que ela tinha escolhido”.
Em muitos desses momentos, Paulo era repreendido. “A certa altura, ela começava a tocar no pulso esquerdo, a apontar como se tivesse um relógio, e dizia: ‘Vambora.’ E eu sabia que estava na hora de regressar ao seu sítio de conforto. E também se chateava se eu passasse demasiado tempo a fotografá-la. Como irmã mais velha, tinha esse direito. Então eu parava de a chatear com a máquina”, recorda, ainda mal refeito do lugar vazio de Luísa à mesa do último jantar de Natal. Natália Faria
“Amigo Valério, a falta que nos faz”
Valério Custódio
n. 27 de Outubro de 1940
o. 16 de Novembro de 2020
Reformado
Nasceu há 80 anos no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. Foi estudante universitário em Lisboa, onde estudou Sociologia e conheceu a futura mulher. Viveu em vários sítios: Portimão, Guarda, Aveiro... Lutou em Angola, numa Guerra Colonial “na qual não acreditava, porque era apoiante dos movimentos de libertação do país onde nasceu” — “‘O homem que foi nunca mais voltou’, costumava dizer a mãe dele, mas isso aconteceu com tantos que participaram naquela guerra...”, conta Inês Direito, a filha.
Valério Custódio era um homem alegre, isso a guerra não mudou: “Fazia amigos em todo o lado, interessava-se mesmo pelos outros, ouvia-os, se passava na padaria perguntava: ‘Então e a sua filha, já está melhor?”; na florista dizia: ‘Parabéns, já sei que a sua neta teve um bebé’; estou só a dar exemplos, a sua característica mais marcante era a capacidade de ouvir, de conviver e de socializar, queria mesmo saber das pessoas...”
Os amigos de Esgueira, em Aveiro, onde vivia, juntaram-se para mandar fazer uma lápide com a seguinte despedida, em letras douradas: “Amigo Valério, ficam as lembranças e a saudade para contar como foi a sua vida e a falta que nos faz.” Assinado: “Amigos de Esgueira.”
Quando Inês se cruza na rua com os amigos do pai, amizades, algumas delas, alimentadas durante 40 anos, amigos de lágrimas nos olhos, é isso que lhe dizem: “Era um amigo, um amigo sempre presente.”
Claro, “toda a gente tem defeitos, ele também tinha”, reconhece. Às vezes era impaciente, e gostava de uma boa discussão política — “mas isso já não é defeito”.
Foi bancário, trabalhou em departamentos financeiros de várias empresas, estava reformado. Era um leitor ávido de jornais e, nos últimos tempos, por causa da pandemia, só saía mesmo para comprar o jornal, alimentos, o peixe fresco que gostava de cozinhar. Ficara viúvo havia vários anos, mas “manteve-se sempre autónomo”. “O meu irmão costumava ir almoçar com o meu pai, era sempre ele a cozinhar”, conta Inês, que vive em Manteigas. Arroz de tomate com filetes, pataniscas, a cachupa nos dias de festa, recorda.
Uma pneumonite crónica fazia-o ter particulares cuidados, sabia que a covid-19 era para ele uma ameaça ainda maior do que o normal. Valério Custódio era um homem sábio. Mas foi apanhado, não percebeu como. O filho que sempre o visitava ao almoço nunca teve resultado positivo num teste, tinham todos os cuidados nessas visitas.
Esteve internado no Hospital de Aveiro, “sempre muito bem tratado”. E também aí parecia ser popular — “Ah, o sr. Valério!”, exclamou alguém quando o irmão de Inês se apresentou no hospital depois de ser chamado para se despedir do pai — uma despedida feita com “um fato de homem do espaço”.
Até ao último dia, da cama do hospital, esteve sempre em contacto, e foi respondendo aos SMS que lhe mandavam amigos e família, rapidamente e “com enorme sentido de humor”. Morreu a 16 de Novembro de 2020. Andreia Sanches
“Morreu vítima da sua própria bondade”
Vítor Duarte
n. 28 de Janeiro de 1952
o. 18 de Junho de 2020
Médico
Era um médico de família “à antiga”, descreve o gastrenterologista e amigo Júlio Veloso. Daqueles que cediam o número de telemóvel e iam a casa dos doentes, muitas vezes sem cobrar nada, e a quem “a família se entregava toda para confessar os segredos da doença e da vida”. Vítor Duarte foi notícia, no dia 18 de Junho, por ter sido o primeiro médico a morrer em Portugal com covid-19, nos cuidados intensivos do Hospital de São José, em Lisboa.
Tinha 68 anos e nenhum factor de risco associado, além da idade. “Morreu vítima da sua própria bondade”, diagnostica o amigo, convencido de que o especialista em Medicina Geral e Familiar foi contagiado num lar onde fora ver uma idosa, a pedido de um amigo a quem não foi capaz de dizer que não. “Nunca era [capaz de dizer que não], porque a sua vida era ver doentes e tratar doentes. Mantinha com eles um relacionamento muito próximo e muito especial”, recorda Júlio Veloso, que, durante décadas, partilhou com ele a sala de exames no Hospital Curry Cabral, onde ambos realizavam um exame chamado colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), que permite o acesso às vias biliares e do pâncreas através de endoscopia.
“O Vítor, apesar de ter seguido a carreira de medicina geral e familiar, ficou sempre ligado a essa técnica. Fui eu que o chamei para o Curry Cabral, porque ele era um profissional com muita experiência e de uma enorme mais-valia, e ele, que era pago de forma quase simbólica, costumava dizer-me, meio a brincar: ‘Não digas a ninguém, porque nos podem ouvir, mas, mesmo que eles [a administração] deixassem de pagar, eu viria trabalhar na mesma.”
Terá sido essa forma de encarar a medicina que o levou a abrir o seu consultório privado. “Ele trabalhava de corpo e alma e a carreira de medicina geral e familiar em Portugal é cheia de frustrações, porque os médicos de família estão assoberbados de burocracia, têm limitações no pedido de exames complementares, etc.. E isso, com o Vítor, não era possível”, descreve, ainda mal refeito de ter perdido um amigo. “Era saudável, não tinha co-morbilidades, não pertencia a nenhum grupo de risco, excepto pela idade”, sublinha, para concluir: “Isto devia mostrar-nos a todos que uma coisa são as estatísticas e outra os doentes...” Natália Faria
O coronel “apagado” pelos americanos
Luís Ernesto Albuquerque Ferreira de Macedo
n. 29 de Setembro de 1947
o. 14 de Novembro de 202o
Engenheiro civil e ex-militar
O coronel Luís Macedo sobreviveu à explosão de um rocket numa emboscada da Renamo e a um derrame cerebral resultante de uma queda de um cavalo. Convivia com uma leucemia crónica há anos, mas o que acabou por lhe ditar a morte foi a covid-19, no dia 14 de Novembro, numa altura em que, aos 73 anos, se preparava finalmente para fazer a vida de campo, na quinta que andou anos a recuperar.
Pela sua biografia fica a saber-se que foi um dos capitães de Abril que ajudaram a soltar o país das amarras da ditadura: braço direito de Otelo Saraiva de Carvalho, foi autor da ideia de criar uma senha e de ocupar as estações de rádio na noite da revolução e um dos que se prontificaram a ajudar Salgueiro Maia a entrar no Ministério do Exército, no Terreiro do Paço, na manhã do dia 25 de Abril. Mas quem, como o coronel Santos Coelho, o acompanhou ao longo da vida prefere recordar um homem que perfilhou duas crianças, além das duas de quem era pai biológico, e que era dono “de uma rectidão exemplar, inteligentíssimo, modesto, com um bom senso extraordinário”.
São superlativos facilmente desculpáveis a um melhor amigo. “O coronel Luís Macedo era como um irmão”, emociona-se Santos Coelho, ainda a remoer o vazio deixado pela morte de alguém que, “apesar de reservado, tinha uma espécie de ‘toque de Midas’ que cativava as pessoas”. “Nunca pensei que a covid pudesse levar alguém que, como ele, sobreviveu a tanto”, cogita Santos Coelho, garantindo que Luís Ferreira Albuquerque Ferreira de Macedo, filho de um general e que por isso “tinha impregnada na pele a vocação militar”, não se deixou amargurar pela “insidiosa marginalização” que sofreu na sua carreira.
“Os saudosistas do poder apareceram com toda a força a seguir ao 25 de Novembro e os americanos, receando que Portugal se tornasse um satélite de Moscovo, fizeram pressão para que ele fosse retirado do comando da companhia de engenharia que integrava as forças da NATO e conseguiram que fosse apagado, metido na prateleira”, precisa Santos Coelho. “Foi um dos vários casos de marginalização e desaproveitamento que Portugal fez dos seus melhores”, concorda Vasco Lourenço.
Por causa dessa marginalização é que Luís Macedo pediu a passagem à reserva e, socorrendo-se da sua formação como engenheiro civil, acabou por se candidatar, em 1989, a uma vaga de emprego de uma multinacional da área da construção civil em Moçambique. “A prova de que era um técnico brilhante é que, no espaço de um ano, foi nomeado director regional da empresa para toda a África Austral”, retoma Santos Coelho.
Nos últimos anos, dividia-se entre Santarém e Moçambique, onde continuava a ser chamado com frequência. “Foi lá que se infectou e morreu. Creio que se terá deixado ficar por casa durante demasiado tempo e já chegou tarde ao hospital”, recua Santos Coelho, lamentando que a pandemia tenha impedido o amigo de comprar o cavalo com que sonhava para cumprir a velhice na quinta. Natália Faria
“Perdemos a minha mãe e o meu irmão num mês e meio”
Helena Marques
n. 17 de Maio de 1935
o. 19 de Outubro de 2020
Escritora e jornalista
Pedro Camacho
n. 29 de Julho de 1961
o. 5 de Dezembro de 2020
Jornalista
“Todos os dias sinto que o telefone pode tocar e que meu irmão Pedro vai estar do outro lado da linha. Ele não era especialmente falador, mas gostava de se demorar ao telefone, muito mais do que eu, que, ao contrário dele, tenho fama de extrovertido. Também dou por mim a fazer planos para ir jantar com ele, a minha mulher e a minha cunhada Xinha, com quem o Pedro partilhou quase toda a vida, mais de quatro décadas, e que é como uma irmã para mim. O Pedro gostava da cumplicidade que a minha cunhada e eu reforçámos nos últimos anos. Talvez tenha sido o melhor presente que lhe dei. Ficava feliz com a nossa proximidade, embora nunca me tenha dito. Não foi preciso. O Pedro não era de muitas palavras, mas o sorriso dele dizia tudo.”
A descrição é enviada ao PÚBLICO pelo editor e autor Francisco Camacho, o irmão de Pedro Camacho, jornalista nascido no Funchal, director de inovação e novos projectos da Lusa, com uma carreira que passou pela direcção de vários jornais, incluindo o PÚBLICO. “Esse sorriso está sempre nos meus pensamentos. Ainda agora está aqui, comigo, irónico mas cúmplice, a amparar-me com leveza nesta tarefa difícil que é lembrá-lo publicamente sem ter a certeza de que ele aprovaria tanta exposição.”
Francisco prossegue o seu testemunho: “É estranho, mas não chorei a morte do Pedro como teria esperado se, há tempos, me dissessem que o meu irmão iria morrer. É importante chorar os mortos, mas, se calhar, não tem de ser sempre assim. A generosidade do Pedro era tal que chego a pensar que ele me poupou intencionalmente a um luto pesado. Como dezenas de pessoas que trabalharam com ele fizeram questão de sublinhar nas redes sociais — todas elas mais insuspeitas do que eu —, o Pedro tinha uma integridade de ferro, uma bondade rara e uma capacidade de empatia enorme. Tudo isso é verdade. Mas, para mim, era sobretudo o irmão oito anos mais velho que, quando eu era pequeno e ele um adolescente que já gostava de beber copos, brincava horas intermináveis comigo, via desenhos animados ao meu lado, construía brinquedos em madeira para mim e proporcionava-me o privilégio de estar ao pé dos muitos amigos dele, tudo isto sem esforço e com um prazer genuíno, porque no fundo, e até ao último dia, nada o deixava tão contente como ver um miúdo feliz.”
“O Pedro era adorado por todas as crianças, o que revela muito do que ele foi e da forma como tocou tantas vidas”, continua Francisco. “A minha mãe costumava dizer-me que as crianças são exímias a distinguir os adultos bons dos restantes – antes de eu a apresentar àquela que viria ser a minha segunda mulher, perguntou-me se os meus filhos gostavam dela e os seus olhos brilharam ao ouvir uma resposta afirmativa.”
“Perdemos a minha mãe [Helena Marques] e o meu irmão Pedro no espaço de um mês e meio: 19 de Outubro e 5 de Dezembro de 2020. De um momento para o outro, a nossa família tornou-se protagonista de uma história inverosímil, de tão trágica e inesperada. A minha mãe teve aquilo a que se pode chamar uma vida cheia. Um casamento longo e feliz, quatro filhos, dez netos e quatro bisnetos. O seu percurso profissional como jornalista mereceu o reconhecimento dos seus pares, fez dela a primeira mulher a ocupar um cargo de direcção num jornal e levou-a a viajar pelo mundo com uma cadência que era, então, invulgar. Aventurou-se como escritora já perto dos 60 anos, afirmou a sua voz de ficcionista em romances como O Último Cais e recebeu numerosas distinções, entre as quais o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores. Era uma mulher realizada, feliz e grata — talvez a sua virtude mais admirável. Feminista e profundamente católica, tinha uma vocação única para cuidar da sua paz interior, o que se manifestou de uma maneira admirável depois de o meu pai morrer, quando o desgosto da viuvez precipitou a deterioração da sua memória. Tornou-se ainda mais disponível e afectuosa, enfrentando a erosão dessa faculdade intelectual que lhe fora preciosa toda a vida com uma doçura e uma necessidade de toque que, até então, geria com a parcimónia das grandes senhoras de recorte britânico que pareciam servir-lhe de modelo.”
Foi o irmão Pedro que telefonou a Francisco a comunicar a morte da mãe, vítima de covid-19. “Nunca estamos realmente preparados para uma notícia assim, mas a minha mãe tinha 85 anos e estava há vários dias internada no hospital com um prognóstico reservado. No dia seguinte, o Pedro e eu reunimo-nos com os nossos irmãos para tratar dos preparativos do funeral.” Alguns sentiram que Pedro, “de certa forma, já pressentia o pior para ele próprio”. Foi o último encontro de Francisco com o irmão. “Ficam as memórias, os sorrisos e uma presença que não se vê, mas que nos acompanha sempre, como tudo o que nos resta.” A.S.
Era do Marítimo, e tinha um coração grande
Rui Quintal
n. 10 de Setembro de 1978
o. 19 de Janeiro de 2021
Operário da construção civil
Primeiro foi a alegria do futebol. Os estádios fechados, sem público. O Marítimo, que seguia religiosamente desde a adolescência, a jogar sozinho, com as bancadas despidas. Depois foi ele, a vítima. Rui Quintal, de 42 anos, natural de Santa Cruz, Madeira, morreu a 19 de Janeiro. Esta semana. Foi o 30.º óbito associado à covid-19 no arquipélago, que, desde o início da pandemia, contabiliza 31 mortos.
Rui estava em casa, com a namorada, a companheira de sempre, e com o filho. Por volta das cinco horas, estava com dificuldades em respirar, mas descansou a mulher. “Eu fico bem”, disse. Não ficou. Duas horas depois, a mulher estranhou o silêncio. Estava em paragem cardiorrespiratória.
Era o mais velho de quatro irmãos. Rui, que fazia 43 anos em Setembro, Dinarte, de 40, Lourenço, de 36, e Daniel, de 20, andavam sempre juntos. O Marítimo era uma paixão comum, que os levou a integrar várias claques da equipa e a fazer parte do núcleo fundador dos Fanatics 13, um dos mais representativos grupos de apoio do clube.
A família fala de um homem frontal, mas justo. Sempre disponível para ajudar. Nos passeios do grupo, Rui era o homem do “braseiro”. Aquele que fazia o melhor macarrão da ilha, o que tinha o coração maior. “O maior orgulho que tenho é ver a forma como ele acolheu o filho de oito anos da namorada e lhe chamou seu. Até hoje. E o Diogo já tem 17 anos”, resume um dos irmãos, que fala da angústia da perda e da incerteza da despedida. “Não sabermos como será o funeral, é terrível.”
Toda a família é católica. Rui foi catequista durante 25 anos, e responsável pelos acólitos na paróquia local, mas é a paixão pelo Marítimo – o clube publicou uma nota de pesar nas redes sociais – que o definia. Uma relação que começou por acaso. Em adolescente, era portista, e, nas vésperas de um jogo do Porto na Madeira, o pai deu-lhe “dois contos” para comprar o bilhete. Na loja do Marítimo, apaixonou-se pelas cores. Com os “dois contos” fez-se sócio do clube e ainda comprou um cachecol. Um atrás do outro, foi ‘convertendo’ os irmãos. Domingo de jogo, era vê-los no estádio. Dos primeiros a chegar, dos últimos a sair.
Perfeccionista, trabalhava no sector da construção civil, onde colegas e clientes lhe gabavam-lhe o zelo que colocava em cada trabalho. Principalmente louças e impermeabilizações.
Quando nasceu, a mãe tinha 16 e o pai 17. Foi a razão dos pais se casarem tão cedo. Ambos também estão com covid-19. Praticamente toda a família está. Não sabem como o vírus entrou. Sabem que deixou marcas. Márcio Berenguer
“Isto é o Guerra”
Joaquim Guerra Ferreira
n. 27 de Julho de 1956
o. 19 de Janeiro de 2021
Comercial
Foi uma vida que passou por vários jornais. Pelo Dia, pelo Se7e, pelo Expresso... Joaquim Guerra Ferreira chegou ao PÚBLICO em 1993, como “angariador de publicidade”, como se dizia antigamente, conta a mulher, Dulce. Tinha 64 anos, iam fazer 30 de casados.
Com o tom de voz que se imprime quando mesmo no meio de uma grande tristeza se recorda uma coisa boa, Dulce prossegue: foram colegas no Se7e. “Em 1987, 1988, eu era coordenadora de publicidade, ele angariador, como se dizia então — hoje diz-se delegado de publicidade —, e ele começou a andar atrás de mim. Eu na altura fazia aeróbica de competição e um dia disse-lhe: ‘Se quiseres, aparece depois do treino, às dez da noite’, achei que ele não aparecia. Mas ele era uma pessoa muito perseverante, às dez da noite estava à porta do Ateneu Comercial de Lisboa. Trazia uma prenda. Um cão de peluche, com os dentes arreganhados e um ar furioso. Disse-me: ‘Isto és tu, mas eu gosto de ti assim.’” Casaram-se a 20 de Abril de 1991. Não tiveram filhos.
“Era um homem muito reservado, mas absorvia tudo, tinha um grande sentido ético, e era um homem de livros, lia muito”, diz. Joaquim Guerra Ferreira morreu nesta terça-feira, 19 de Janeiro, na pior semana em termos de número de mortes por covid-19 em Portugal, num quadro de complicações respiratórias agravadas por infecção pelo novo coronavírus.
“Era uma pessoa reservada, tímida até, leal para com os seus colegas, apesar do seu temperamento explosivo que poderia fazer saltar caixotes do lixo quando as coisas não lhe corriam de feição. Recordo esses episódios com saudade, onde fechávamos especiais ao minuto e o Guerra tinha sempre uma página [de publicidade] de última hora para o caderno”, conta Mário Jorge Maia, do PÚBLICO. “Conheci-o em 1999, quando assumi a direcção comercial. Era cumpridor e metódico.”
Nasceu na Figueira da Foz, passou parte da infância em Benfica e parte da juventude em Coimbra. Vivia actualmente no Dafundo, com a mulher. Já não tinha outra família: “Os pais dele eram filhos únicos e já morreram, ele era filho único também”, conta Dulce. E continua: “O trabalho era a sua vida. Na véspera da morte, ainda estava agarrado ao computador. Pouco saía de casa nos últimos tempos. Tinha asma e andava mais em baixo. Saía apenas para fazer o seu passeio higiénico. Quando chegava a casa, só faltava tomar banho com álcool. Não sei como apanhámos o vírus. Também tive teste positivo. Tivemos um vizinho no prédio que morreu com covid, a mulher dele ainda está internada... O Guerra começou com sintomas de constipação. Foi uma semana a tratar dele. Mas começou a ter falta de ar. Quando lhe estava a dizer para irmos ao hospital, caiu redondo no chão. Foi um fósforo. Não deu tempo para nada.”
Dulce tem dificuldade em escolher uma fotografia dele, que não gostava de ser fotografado. Mas depois lembra-se: há uma, sim, que junta as duas coisas de que ele mais gostava: “O jornal e a bandeira da Associação Naval 1.º de Maio, da Figueira da Foz, onde o avó foi remador e o pai foi guarda-redes e jogou basquetebol. O Guerra nunca fez ginástica, mas era um fervoroso adepto do clube. Isto é o Guerra.” Andreia Sanches
O “sr. Jacinto da Papelaria”
Jacinto Cardoso Baptista
n. 26 de Dezembro de 1933
o. 10 de Janeiro 2021
Comerciante
A notícia chegou às 7h45 do dia 10 de Janeiro, um telefonema do Hospital de Viseu. Jacinto Baptista tinha morrido e era uma das muitas vítimas da covid-19 que nessa semana engrossaram os números do centro hospitalar. A filha, Isabel Estrela, já receava o telefonema. Ela própria tinha estado internada por causa da mesma doença. Ela saiu; o pai, não.
Jacinto Baptista deu entrada no hospital a 3 de Janeiro. Foi a neta quem chamou a ambulância quando percebeu que o avô andava mais cansado do que o habitual e “um pouco desorientado”. Descobriram, nessa altura, que tinha covid-19. Esteve em tratamento, mas “nos últimos dois dias foi muito abaixo”. Na semana anterior também tinha estado no hospital, por causa de uma queda. Ficou internado, teve teste negativo, e saiu no dia em que completava 87 anos.
“A 25 de Dezembro, ainda foi à missa”, conta Isabel Estrela, que fala do pai como sendo um homem activo e de “fácil amizade”. E, na realidade, em Viseu, a figura de Jacinto está presente em várias gerações. É que foram quase 50 anos a vender livros escolares, canetas, cadernos, sebentas...
Atrás do balcão da Papelaria Avenida, bem no centro da cidade, o “sr. Jacinto da Papelaria”, como era conhecido, rapidamente se fez notar. Inicialmente, em 1958, como empregado, mais tarde, como sócio e, por fim, como proprietário da papelaria onde o nome das pessoas para as encomendas dos livros escolares já estavam decorados. Primeiro com os pais, depois com os filhos que já se tinham tornado pais. Assim foi até ao ano 2000, quando chegou a hora da mudança, depois de mais de 50 anos a trabalhar. Mas a reforma não o derrotou. Sempre activo, recorda a filha, gostava de dar o seu passeio mais pela manhã, ir até ao Rossio, estar com alguns amigos. Nos primeiros tempos, e enquanto a neta andava na escola, era ele quem a ia levar e buscar. “Ela deixou até ao quinto ano, depois já tinha alguma vergonha. Mas ele, tenho cá para mim, ia lá sempre, mesmo sem ela saber. Quantas vezes a minha filha chegava a casa e cinco minutos depois cá estava ele...”, lembra Isabel Estrela.
Mesmo com 87 anos, Jacinto Baptista não perdeu o hábito da “voltinha”. Antes do Natal, esteve no Rossio a ver montar o presépio. “Estava bem-disposto”, conta o amigo Costa que, quando soube do falecimento, já “era tarde para ir ao funeral”. A verdade é que também não podia. No último adeus ao “sr. Jacinto da Papelaria” só pôde ir a neta e o genro. Sandra Rodrigues
O professor Tadeu do cante alentejano
Joaquim Tadeu
n. 7 de Janeiro de 1970
o. 6 de Janeiro de 2021
Professor de Música
A notícia da morte de Joaquim Tadeu no passado dia 6 de Janeiro, na véspera do seu 51.º aniversário, deixou incrédula a comunidade bejense. O professor de Música, natural de Guimarães, que ensinou o cante a centenas de crianças na Escola Básica 2-3 Mário Beirão, em Beja, sucumbia ao vírus da covid-19.
Os seus alunos e o O Grupo Mocinhos Em Cante já não o vão ter com a sua natural bonomia e paciência a incentivá-los a amar a música da sua terra: o cante alentejano. Os seus dois filhos, menores, de sete e dez anos, perdem o pai depois de a mãe ter partido, há seis anos, vítima de uma pneumonia.
Joaquim Tadeu era o mais novo dos quatro irmãos, descreve ao PÚBLICO o seu irmão Francisco Tadeu, frisando o esforço de “toda a família de fracos recursos e a viver humildemente para proporcionar ‘ao Quim’ a possibilidade de concluir o secundário”. Depois, partiu para a sua formação em Música. Palmilhou escolas de Trás-os-Montes, rumou para sul, em direcção ao Algarve. Regressou à região transmontana, mas o Sul do país já o tinha cativado. Foi para Vidigueira, mas veio a radicar-se em Beja, há mais de 25 anos, para leccionar Música no ensino básico.
Não lhe bastava ensinar Música. “Adaptou-se ao Alentejo”, conta o irmão. Conheceu a mulher, também ela professora, e formou família. Longe de se acomodar às circunstâncias, Tadeu estende a sua colaboração às rádios locais, para falar e promover o desporto, nomeadamente o futebol e o ciclismo, quando o cante é declarado património imaterial da humanidade. Era tempo de abrir novos horizontes, e avança com a esposa e o alentejano Paulo Colaço para o projecto Heranças Com Raízes, que envolve centenas de crianças da Escola Mário Beirão e de outras escolas do distrito de Beja.
Foi viver para um monte alentejano em Vila de Frades, na Vidigueira, para superar o falecimento da mulher, mantendo sempre os filhos junto de si. Abriu uma página do Facebook onde projectava novas formas de colaboração com os outros e promovia outras variantes musicais. No início de Dezembro, ofereceu aos seus seguidores um tema dos Led Zeppelin, “I think this is a song of hope”, acompanhando-o de uma frase que fez meditar muita gente: “Música para um momento tão delicado, na tentativa de nos fazer animar, sonhar ou recordar bons tempos.”
Até que, em meados de Dezembro, apresenta um estado febril. Foi fazer o teste e teve resultado positivo. Depois ficou sem olfacto e paladar e, por fim, falta de ar, recorda Francisco Tadeu. Entrou nos cuidados intensivos do hospital de Beja e, quando a recuperação já fazia augurar algo de bom, sofreu uma hemorragia em duas úlceras e “o vírus atacou-lhe o fígado e os rins”. Faleceu no dia 6 de Janeiro.
Os filhos estão com o tio. Vivem em Guimarães e “estão a adaptar-se bem e já têm novos amigos”, realça Francisco Tadeu. Carlos Dias
Um apaixonado pela dança. E pela vida em geral
Nelson Sabença
n. 24 de Março de 1957
o. 19 de Janeiro de 2021
Nutricionista
Se houver vida depois da morte, Nelson Sabença estará, certamente, a dançar. A paixão que nutria pelas danças latinas era demasiado grande para o levar a desistir de acompanhar o ritmo. Amava uma boa salsa, uma rumba ou um mambo. Gostava de fruir da vida, fosse a participar em caminhadas ou simplesmente a conviver com os amigos. Viu-se obrigado a travar uma longa batalha com a covid-19, que, esta semana, acabou por levar a melhor, deixando a Universidade de Aveiro (UA) de luto.
Natural de Lamego, Nelson Sabença chegou à instituição de ensino superior aveirense em 1982, para trabalhar como nutricionista (era licenciado em Ciências da Nutrição pela Universidade do Porto), e foi na UA que fez carreira. Era um profissional “muito exigente e rigoroso”, sempre muito atento “às condições da limpeza dos bares, ao armazenamento dos produtos”, recorda Helena Santos, que durante cinco anos trabalhou sob a alçada de Nelson Sabença.
Ao rigor, Pedro Oliveira acrescenta a frontalidade. “Era uma pessoa muito directa, por vezes com um feitio difícil, mas, ao mesmo tempo, com um enorme coração e generosidade”, recorda. Trabalharam juntos durante 12 anos e à ligação profissional foram, também, somando os encontros em torno da dança, das caminhadas nos passadiços, da actividade física em geral. Pedro Oliveira lembra o “orgulho com que ele falava das filhas, sempre que elas tinham um acontecimento importante” – o nutricionista da UA deixou duas filhas.
Ana Corujo também desenvolveu uma “bonita” amizade com Nelson Sabença por causa das danças latinas. “Onde houvesse eventos de danças latinas, ele estava presente”, assegura a amiga, que o define como “uma boa alma”. “Tinha um coração de ouro, cultivava a paz, sempre a apoiar toda a gente”, destaca. Nos encontros de dança, em particular, “ele era aquela pessoa que estava sempre disponível a dar a mão aos mais novos, a ensinar”. Talvez por isso mesmo, repara Ana Corujo, “era convidado para todos os eventos, fosse de que escola fosse”.
Apesar de toda a sua energia e alegria, Nelson Sabença viria a falecer ao fim de dois meses de internamento, a lutar contra a covid-19. Maria José Santana
Um homem de proximidade e de obras
Horácio Alves Gomes
n. 27 de Fevereiro de 1937
o. 6 de Novembro de 2020
Padre
“A grande marca dele era a proximidade. Se visse uma pessoa conhecida na rua, nem que fosse a 100 ou 200 metros, parava para conversar e para ver se estava tudo bem ou não”, diz ao PÚBLICO Ricardo Cunha, professor de 33 anos que, enquanto membro da fábrica da igreja de Pombeiro de Ribavizela, lidava regularmente com Horácio Alves Gomes. Foi nessa paróquia, na de Vila Fria e na de Lagares, todas no concelho de Felgueiras, que o padre cumpriu os últimos anos de um sacerdócio que começou a 22 de Julho de 1962, quando foi ordenado no mosteiro beneditino de Pombeiro, indica uma nota da Diocese do Porto. Como membro dos Padres e Irmãos Vicentinos, foi missionário em Moçambique desde 1962 até 1986, concluiu um doutoramento em Sociologia nos Estados Unidos e trabalhou depois em Nisa e em Ponte de Sor, antes de rumar definitivamente a Felgueiras, em 2008.
Quando soube que o novo pároco tinha 71 anos, a comunidade de Vila Fria ficou um “pouco apreensiva”, conta ao PÚBLICO Carla Cibrão, operária e catequista de 49 anos. Mas Horácio Alves Gomes mostrou-se um “jovem dinâmico”, sempre presente nas várias iniciativas pastorais daqueles territórios. “Era acessível e solidário, mas também queria sempre mais, em termos de actividades paroquiais e do património da igreja”, lembra.
As “dinâmicas pastorais inovadoras” e o zelo com o património também surpreenderam Ricardo Cunha, em Pombeiro de Ribavizela. Horácio Alves Gomes foi um dos “grandes potenciadores” do restauro do órgão de tubos do Mosteiro de Pombeiro, inactivo durante 200 anos, ao contribuir para a obtenção de um financiamento de 255 mil euros em parceria com a Rota do Românico. Além do papel na valorização do monumento nacional, o sacerdote impulsionou o restauro do exterior da igreja de Vila Fria e a edificação da nova igreja de Lagares, inaugurada em 2018, após um investimento de dois milhões de euros, lembra o professor.
Foi precisamente nesse templo que o padre vicentino celebrou a última eucaristia, a 1 de Novembro, altura em que ficou “muito fraco”. Depois de ter ido para o Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães, onde se provou que estava infectado com o novo coronavírus, Horácio Alves Gomes voltou à sua residência, no Seminário de Oleiros, em Felgueiras, onde viria a morrer a 6 de Novembro. Para as comunidades que servia, a sua morte significou a “perda de um amigo e de uma pessoa próxima”, confessa Ricardo Cunha. “Por causa de todas as contingências, o funeral não foi a despedida merecida”, lamenta. Tiago Mendes Dias
Um bon vivant de trato duro e coração mole
Mário Veríssimo
n. 1 de Abril de 1938
o. 16 de Março de 2020
Enfermeiro
“Era um bon vivant. Dava para fazer um livro sobre ele. Era uma peça incrível...” É assim que começa a conversa com João Alves, ex-jogador e treinador de futebol, sobre Mário Veríssimo, a primeira vítima mortal de covid-19 em Portugal.
Veríssimo, o “Foca” — epíteto inspirado no seu físico roliço, como uma foca —, foi enfermeiro no Hospital de Santa Maria, mas foi como massagista do Estrela da Amadora e da selecção nacional que se tornou uma figura sui generis do futebol português.
São vários os relatos de suturas feitas a sangue-frio junto ao relvado. Veríssimo não gostava de fiteiros. Orgulhava-se de ser rijo e prático. Para ele, não havia lesões e feridas incuráveis. Todos os que relembram Veríssimo apontam-lhe o perfil implacável.
“Era um durão”, confirma Chainho, ex-jogador do Estrela, garantindo que essa vertente da personalidade se estendia não só aos cuidados médicos impiedosos, mas também ao trato com quem jogava menos bem. Ou mal — com Veríssimo, o “sem-filtro”, não havia meias-palavras.
“Era um tipo fantástico, com força e carisma impressionantes. Tinha a mania que era treinador e dava ‘bitaites’ no banco. Quando não jogávamos nada e éramos substituídos, ele dizia logo: ‘Olha, ainda bem que saíste. Contigo em campo isto ficava pior!’ Quem era substituído estava tramado com ele”, recorda Chainho, entre risos.
No Estrela, Mário Veríssimo era um pouco de tudo: enfermeiro, massagista, médico, quando era necessário, psicólogo dos jogadores, animador do grupo e até treinador. “Sabia muito do jogo. Muitas vezes, à mesa, eu dizia-lhe: ‘Faz lá aí a tua equipa’ e ele acertava quase sempre. Era como meu adjunto. Quantas vezes eu tinha dúvidas e debatíamos as coisas...”, elogia João Alves.
Mas nem só de dureza e rispidez se fazia este homem. Rui Neves, jogador “de Veríssimo” durante muitas temporadas, na Reboleira, garante que havia ali um coração sensível.
“Numa viagem para um jogo, o nosso acelerado motorista, o Quim, iniciou repentinamente a marcha e o Veríssimo, que ainda estava de pé, caiu com estrondo. Toda a gente riu, só que eu tive o azar de estar sentado lá mesmo ao lado. Assim que se levantou, superirritado, ele virou-se para mim e disse: “Estás-te a rir? Se partires uma perna, depois vem-me pedir para te tratar…”
“A coisa passou, mas, na semana seguinte, por ironia do destino, eu acabei por sofrer uma fissura no perónio. Eu acho que ele se sentiu mesmo mal por isso, mesmo sem ter qualquer culpa. Que o grande Veríssimo descanse em paz”. Diogo Cardoso Oliveira
O padre “culto” que criou um banco alimentar
Carlos Mário Gomes
n. 6 de Abril de 1972
o. 14 de Janeiro de 2021
Padre
Carlos Mário Gomes era um padre de “boas homílias”, atento às necessidades das comunidades a que atendia, recorda Manuel Barbosa, membro ligado à Confraria das Almas, entidade da paróquia de São Miguel de Roriz, em Barcelos. E era um homem que tanto se alimentava de um “bom bacalhau ou de um bom sarrabulho de Ponte de Lima” como de viagens, sobretudo a Itália. “Tive o privilégio de o acompanhar em algumas viagens a Itália. Estivemos em Florença, em Siena e em San Gimignano. Gostava de ver museus, de arte sacra, de buscar conhecimento”, conta o empresário de 47 anos, ao recordar o homem com quem almoçou centenas de vezes.
Ordenado sacerdote em 19 de Janeiro de 1997, com 24 anos, Carlos Mário Gomes passou por São Paio de Vizela e Tagilde, paróquias do Arciprestado de Guimarães e Vizela, e por Argivai e Touguinhó, paróquias do Arciprestado de Póvoa de Varzim/Vila do Conde, antes de se fixar em Barcelos, em 2011, refere uma nota da Arquidiocese de Braga. Foram quatro as paróquias que teve de assumir: Campo, Couto e Tamel (São Pedro Fins), além de Roriz. Olhando para o tempo em que o padre ali esteve, Manuel Barbosa realça a sua diligência para manter as eucaristias durante o primeiro confinamento, servindo-se do Facebook. “Foi uma sensação incrível e estranha fazer uma eucaristia com quatro pessoas: além de mim e do padre, estava o sacristão, Joaquim Ferreira, e o presidente da Junta de Freguesia, Luís Gonzaga”, lembra.
Mas a atenção às paróquias extravasou a celebração da mensagem de Jesus Cristo. Em Campo, por exemplo, adquiriu material de cozinha para criar um banco alimentar no salão paroquial. “Aquilo está dotado para confeccionar alimentos, se for necessário”, esclarece ao PÚBLICO Mário Costa, um antigo militar agora na reforma.
Para o habitante de Campo Carlos Mário Gomes, era um homem de “grande sensibilidade”, capaz de “personalizar as homilias” nos funerais, mas também “low profile”. “Alguns paroquianos acusavam-no de ser anti-social, por não ser uma pessoa que falava imediatamente para toda a gente”, recorda. “É uma mágoa que fica, mas também vai servir para lembrar o padre Mário”, confessa Mário Costa. Diabético, Carlos Mário Gomes morreu três dias depois de transportado para o Hospital de Braga, já com infecção pelo novo coronavírus. Manuel Barbosa “nem queria acreditar” quando soube. “Tínhamos combinado ir a Viena quando isto passasse. Foi um amigo que partiu.” Tiago Mendes Dias
O bombeiro-ciclista que batia recordes
Carlos Vieira
n. 15 de Fevereiro de 1952
o. 15 de Dezembro de 2020
Bombeiro
Carlos Vieira ficou conhecido como “o bombeiro-ciclista” e era “um orgulhoso embaixador de Leiria”, recorda o comandante dos Bombeiros Municipais de Leiria, José Rito. Carlos Vieira morreu no dia 15 de Dezembro, aos 68 anos, infectado por covid-19. Encontrava-se já fragilizado por outra doença.
Natural de Leiria e bombeiro de carreira, Carlos Vieira esteve sempre ligado ao ciclismo e inscreveu o seu nome por diversas vezes no Livro de Recordes Guinness, tendo batido o recorde mundial de resistência em bicicleta, ao pedalar 191 horas sem parar, em 1983, feito que alcançou no Estádio Municipal de Leiria.
Esteve ligado aos Bombeiros Municipais de Leiria cerca de 30 anos, tendo entrado na corporação em 1978, lê-se na nota de pesar que a Câmara Municipal de Leiria emitiu em Dezembro. Carlos Vieira conciliou essa actividade com a sua outra paixão: em cima de uma bicicleta, representou clubes como o FC de Alverca, Sporting Clube de Portugal, Flores do Lis, GD Cela, Bairro dos Anjos, Núcleo Sportinguista de Leiria, Casa do Benfica de Leiria e a União de Ciclismo de Leiria.
Mas o recorde dos anos 80 está longe de ser o único empreendimento de grande fôlego de Carlos Vieira. Por várias vezes, fez a ligação entre Fátima e o Vaticano em bicicleta e foi recebido por dois Papas: por João Paulo II, em 1986, e por Francisco, em 2014 e em 2017.
O ciclista pedalou também até várias cidades geminadas com o município de Leiria: desde Olivença, do outro lado da fronteira com Espanha, a Rheine, uma localidade alemã perto da fronteira com a Holanda. Fê-lo igualmente com Saint-Maur-des-Fossés e Quint-Fonsegrives (França), mas também com Olavarria, na Argentina, “esta última em 2016, numa viagem de quatro dias, percorrendo 560 quilómetros de Bicicleta e 10.000 de avião”, recorda a autarquia.
Aos 68 anos, tinha ainda planos para continuar a percorrer longas distâncias, mas foi obrigado pela pandemia a fazer uma pausa. Quando o novo coronavírus começou a alastrar-se, no início de 2020, o ciclista viu-se obrigado a cancelar os planos de “pedalar pela paz” na Austrália, num percurso de 4130 quilómetros que ligaria Adelaide a Port Douglas. Camilo Soldado