O candidato poucochinho
Mas, afinal, não foi o comentador genial quem achou que nem sequer precisava de fazer campanha? Não foi o professor sagaz quem entendeu que a legislação eleitoral não devia ser alterada, com a antecedência necessária? A culpa da abstenção massiva que se espera neste domingo não foi – nem será – da covid.
Marcelo Rebelo de Sousa arrisca-se a ser o Presidente eleito com o menor número de votos expressos da História portuguesa. Até agora, esse recorde pertencia a Cavaco Silva, na sua reeleição presidencial de 2011, com apenas 2.231.956 votantes e uma abstenção de 46%.
Só um negacionista ignoraria que a taxa de abstenção do próximo domingo será massiva e superará, em muito, aquela.
Encontram-se inscritos 10.865.010 eleitores. Admitindo que comparecem nas urnas 30% do total, e mesmo a fazer fé na média das mais recentes sondagens, Marcelo Rebelo de Sousa obteria, na melhor das hipóteses, 60% dos votos; ou seja, 1.955.701.
Dito de um modo ainda mais claro: representaria apenas 15% das/os portuguesas/es. Isto é, em cada 20 portuguesas/es, apenas três se sentiriam representados pelo futuro Presidente!
Dir-se-á: a culpa é da covid.
Mas, afinal, não foi o comentador genial quem achou que nem sequer precisava de fazer campanha?
Não foi o professor sagaz quem entendeu que a legislação eleitoral não devia ser alterada, com a antecedência necessária?
Não foi o homem dos afetos quem, demagogicamente, dispensou realizar tempos de antena, para poupar uns cobres ao erário público?
Não foi o estadista cooperativo quem fingiu ter poderes executivos, confundindo-se com o Governo e assumindo, como suas, responsabilidades que a Constituição não lhe atribui?
Não foi o estratega sedutor quem trocou o seu silêncio cúmplice pelo apoio (envergonhado) do “status quo” do Partido Socialista, assim desmobilizando o eleitorado socialista e afastando o eleitorado do centro-direita, que, agora, lhe recusa o voto e reforça as candidaturas à sua direita?
Não, não foi – nem será – a covid.
Do outro lado do Atlântico, até houve um Presidente trágico-cómico que gerou o caos, com o seu negacionismo da pandemia, recusando acudir aos mais pobres, condenados à morte pela falta de um Serviço Nacional de Saúde (que Marcelo não só não aprovou, por ter faltado à sua votação, como tudo fez para o extinguir, em 1982, só sendo impedido por decisão do Tribunal Constitucional).
Mas, lá, a afluência às urnas bateu todos os recordes (!). Joe Biden foi o Presidente norteamericano eleito com o maior número de votos: 81.281.891 votantes. Donald Trump foi o candidato republicano que mais votos recolheu, desde sempre: 74.223.254.
Não houve covid nos Estados Unidos da América? As pessoas não recearam sair para votar? Claro que sim.
Mas, lá, planeou-se. Preparou-se – com tempo – o voto por correspondência. Adaptou-se a democracia, criando mesas de voto através de “drive-ins”, para que os votantes nem sequer tivessem de sair dos seus automóveis. Permitiu-se o voto eletrónico. Mobilizaram-se os eleitores. Fez-se política.
Em Portugal, não.
Porque nós somos sempre superiores. Claro.
A somar a um mandato presidencial oco e superficial, em que os salamaleques sufocaram as ideias e as “selfies” abafaram a voz de quem devia ter a coragem de dizer aquilo que não agrada – mas que é decisivo, para os que hão de vir –, gerou-se uma cultura do Medo. Hoje, não há nenhuma portuguesa ou português que saia à rua com o sorriso de quem anseia pelo dia que espreita.
Só há cobardia.
Receio.
Terror de que alguém possa ousar não elogiá-lo.
Como toda a Primavera marcelista, depois veio o Inverno. Gélido. Paralisador. Confinador.
Adotar medidas criativas que chamem as pessoas às urnas? Isso não. Já ganhei. Criar condições para que se vote com Alegria (e nunca com Medo)? Isso dá trabalho. Marcar eleições para a exata data em que, ano após ano, se dá o pico da gripe sazonal? Claro. Já há vacina e tudo.
Depois, não se queixem.
Nem venham com desculpas (esfarrapadas).
Custa ouvir. Mas, quando as pessoas não votam em nós, é porque nós não fizemos o suficiente para o merecer.
Talvez fiquem satisfeitos quando, no próximo domingo, conseguirem, finalmente, acabar com as filas e deixar as mesas de voto desertas. Se pensassem melhor, perceberiam que esse é o maior risco que o Presidente-candidato enfrenta: nem sequer conseguir ser eleito à primeira volta e ter de discutir com a candidata socialista a eleição. E o candidato já começou a percebê-lo, nos últimos dias. Enquanto as sondagens caem a pique.
Mesmo que ganhasse, teríamos, porém, um Presidente eleito com um número risível (e caricatural) de votos. Que representará tudo menos “Todos os Portugueses”.
Se calhar, é a isto que se referem. Quando propagandeiam o “afastamento social”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico