As vozes da democracia
A realidade é esta (e a lamentável conquista também): num século de República, a Presidência nunca foi ocupada por uma mulher. Não caiamos em demagogias simplistas e deixemos bem claro que circunscrever o problema da representatividade democrática ao número de Presidentes (não) eleitas é redutor.
O que nos ensinou a tomada de posse presidencial dos EUA sobre diversidade, representatividade e democracia? Portugal aprenderá, desta vez, a lição?
Estamos em 2021 e Kamala Harris é a primeira mulher vice-presidente dos EUA. Vestia um casaco roxo: a cor que, ao lado do branco e do verde (Reino Unido) ou dourado (EUA), representou o movimento sufragista que, nos inícios do século XX, se debateu para que, hoje, as mulheres tenham o direito de participar na vida pública, nomeadamente, através do exercício do direito de voto. Kamala é também a primeira mulher negra de ascendência jamaicana e indiana a tornar-se vice-presidente dos EUA. E aquele roxo da bandeira sufragista – e do casaco de Kamala – lembra-nos que nem todas as mulheres estavam representadas nessa luta e que, só mais tarde, ganhariam o seu lugar na vida pública.
A cerimónia deu-nos, pelo menos, mais duas lufadas de simbolismo: o juramento de Kamala, prestado diante de Sonia Sotomayor, a primeira mulher latino-americana nomeada para o cargo de juíza no Supremo Tribunal dos EUA e a sublime declamação do poema “The Hill We Climb”, acutilante e assertivo, que Amanda Gorman eternizou.
Emocionámo-nos, durante a cerimónia, porque ainda celebramos a chegada de mulheres e, concretamente, de mulheres não brancas, a estes altos cargos políticos. Mas também nos inquietámos, porque aquela simbologia suscitou uma reflexão mais profunda sobre o estado da representatividade da democracia em Portugal, a poucos dias das eleições para a Presidência da República. O dilema não é novo e o que Agnes Repplier escreveu a este propósito, é ainda hoje muito actual: “A democracia provoca sempre o contraste entre os seus ideais e a realidade, entre as suas possibilidades heróicas e as suas lamentáveis conquistas.”
Quanto a nós e à representatividade da Presidência da República, os cálculos são fáceis de fazer. A realidade é esta (e a lamentável conquista também): num século de República, a Presidência nunca foi ocupada por uma mulher. Não caiamos em demagogias simplistas e deixemos bem claro que circunscrever o problema da representatividade democrática ao número de Presidentes (não) eleitas é redutor.
A construção de uma democracia igualitária depende, directamente, da sua representação política. Se aceitarmos, então, as premissas básicas das teorias democráticas, as mulheres, enquanto cidadãs com direitos iguais, deveriam partilhar, de forma também igualitária, os lugares nas mesas de decisão política. A qualidade da democracia afere-se, por exemplo, através da transparência das decisões tomadas pelos órgãos políticos, mas também pela garantia da representação de todas as pessoas naqueles momentos decisórios. Só assim se poderá ambicionar cumprir com os imperativos de justiça social e económica que estão na base da igualdade.
Ainda são homens – num protótipo muito específico de homem – que detêm a maioria dos mais altos cargos políticos. Não podemos negar que, apesar de lentos, têm vindo a ser feitos esforços para aumentar a participação política das mulheres, por exemplo, através da política de quotas para as deputadas da Assembleia da República.
Contudo, não basta garantir apenas o aumento do número de mulheres que exercem essas funções. É importante, para a democracia, que a paridade se atinja a todos os níveis e, sobretudo, compreender por que são tão poucas as candidatas a altos cargos políticos. E é também urgente entender que a representatividade não se reduz ao género, nem este se esgota na divisão binária. Não é demais lembrar que Kimberlé Crenshaw, jurista negra, falou de
intersecionalidade (intersectionality), para nos alertar que a discriminação pode existir em razão de factores diversos e simultâneos, como o género, a raça, a identidade e a expressão de género, a orientação sexual ou as condições socioeconómicas.
É necessário, pois, constatar que as nossas instituições e as nossas percepções individuais e colectivas estão estabilizadas em padrões normativos que não dão oportunidade a estas pessoas de aceder a esses lugares de poder. Precisamos de quebrar as barreiras institucionalizadas, de empoderar esses grupos e dar-lhes voz. As vozes que, em uníssono, compõem a democracia. Já dizia a poeta, “a democracia pode temporariamente ser atrasada, mas jamais será permanentemente derrotada”. E é também dessas vozes que nos devemos lembrar no dia 24 de Janeiro.