A América depois de Trump: uma colina íngreme de subir

As feridas dos EUA não se curam num dia, mesmo que esse dia traga um novo Presidente com um discurso de apaziguamento. Mas, embora os cães ainda estejam à solta, foi o dia em que a democracia se reergueu, sacudiu o pó e “a América fez o que sempre faz: avança”.

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Sim, há a pandemia. Mas sobretudo o lastro de Donald Trump. Por ele, Joe Biden tomou posse à porta fechada. Depois da insurreição violenta, foi preciso construir um muro no coração do centro político dos EUA. Erguer arame farpado, alinhar soldados de dedo no gatilho das armas, fechar pontes, cancelar carreiras de autocarro, suspender comboios, trancar parques, enxotar pessoas.

Sim, há a pandemia. Mas a pandemia não gerou o lado feio da tomada de posse. Não houve gente no National Mall em frente ao Capitólio. Mas houve uma instalação – 200 mil bandeiras a representar quem poderia estar ali não fosse a pandemia. Não houve bailes, festas. 

O lado feio foi a cidade sitiada. O medo. “É doloroso ver isto, toda a cidade fechada”, disse, citado pela Reuters, um antigo senador republicano, Jeff Flake, depois de cruzar Washington para chegar ao Capitólio. 

Não houve protestos e violência com a saída de Trump, como se temia. Mas o lado feio não deixou de lá estar, do lado de fora da barricada.

“Se Biden quer levar a América para o Inferno, que leve”, respondeu agressivo um apoiante do Presidente que saiu da Casa Branca pela manhã sem assistir à tomada de posse do sucessor – desde o século XIX que esta hostilidade não acontecia. 

“Hoje é o dia que a nossa democracia se reergue, sacode o pó e faz o que a América sempre faz: avança”, disse dentro do recinto a senadora Amy Klobuchar, que abriu uma cerimónia que a pandemia e Trump não deixaram ressoar na cidade.

A cidade estava estranha e cautelosa, apesar do sol no dia frio de seis graus de Washington. E quem por lá andava também.

“Quero mesmo ver mudanças, mas estou cautelosamente optimista”, disse um estudante de Dallas, Victor Duran, de 22 anos. 

Optimismo adjectivado, é outro legado de Trump. O de Marge Hobley é “optimismo triste” – mas na imprensa americana e nas agências de notícias também se encontram o optimismo inquieto, o optimismo cauteloso e o optimismo medroso.

“A ideia de irmos beber uma taça de champanhe… o melhor é brindarmos com Alka-Seltzer, quem sabe”, disse Hobley à Reuters.

Aos 77 anos, e sabendo que não iria ver a História a acontecer à sua frente – ninguém pôde, nem os que se aproximaram de binóculos, nem os que pedincharam em vão aos polícias e militares “podemos ir só um bocadinho mais para a frente?” –, Marge Hobley saiu da Pensilvânia para estar em Washington no dia da tomada de posse de Biden.

“Acho que estou em modo de reflexão e, se conseguir, rezarei por Biden”, disse antes da cerimónia.

Como outros nas ruas de Washington, tem na ideia a nação que saiu dividida no dia das eleições, em Novembro, o Presidente que perdeu sem nunca aceitar a derrota, os cinco mortos do assalto dos apoiantes de Trump ao Capitólio, os 404 mil mortos da covid-19 nos EUA. “Não há nada para celebrar”, disse Bob Hoyt, consultor financeiro. “Estamos iludidos, a pensar que podemos voltar a pôr o leite derramado dentro do copo”.

Como escrevia Richard Jervey, de Newsbury Port, numa carta ao director publicada no Boston Globe, “os cães foram deixados à solta” e não é do pé para a mão que se volta a enfiar o açaime nessa alma obscura que Biden, como voltou a prometer, no discurso da tomada de posse, pretende acalmar. “Mas isto não vai passar” assim, insiste Jervey, para quem “as salvas de abertura da nova rebelião já foram disparadas”.

Mas não se pode dizer que Biden não está a tentar por todos os meios que exista outra forma de viver a América. Na sua equipa e na cerimónia contida por causa da pandemia, onde a diversidade do país procura estar reflectida. É um esforço, uma tentativa; não se curam feridas profundas com gestos, com palavras, mas elas podem marcar o princípio de uma nova era.

“Estamos a esforçar-nos para forjar um país com propósito. O de compor um país comprometido com todas as culturas, cores, caracteres e condições de homem”, leu Amanda Gorman, 22 anos, a primeira a ser galardoada com o prémio de jovem poeta. Que podia não ter dimensão física para superar a altura do palanque, mas cuja voz intensa elevava-se no ar frio de Washington, onde uns tímidos flocos de neve chegaram a flutuar.

É uma colina que os americanos estão a subir, como refere o título do poema, que pode ser íngreme, árdua, mas obrigatória. Como diz o poema: “Fechamos a divisão porque sabemos que para pôr o nosso futuro em primeiro, temos primeiro de pôr as nossas diferenças de lado.”

Os americanos sabem que o tempo não volta atrás. Não se volta a tempos menos divididos, a “um estado pré-Trump”, como Garrett Snedaker, de Eureka Califórnia, refere numa carta ao director publicada pelo New York Times. Mas se há uma coisa que estes quatro anos demonstram é que “o excepcionalismo americano sempre foi um mito e não há nada que diga que os Estados Unidos não podem tornar-se num Estado falhado ou que o fascismo não pode enraizar-se aqui”. São “tempos desafiantes”, diz Snedaker, mas a esperança mantém-se: “Seja ousado!”

Gorman trazia no dedo um anel com um pássaro engaiolado, oferecido por Oprah Winfrey e que lembrava uma das maiores poetas da América, Maya Angelou (que Bill Clinton convidou para ler na sua tomada de posse) que escreveu I Know Why the Caged Bird Sings: “O pássaro engaiolado trina amedrontado/ por coisas desconhecidas ainda assim desejadas/ e a sua canção é ouvida na colina distante/ porque o pássaro canta a liberdade.”

O país “ferido, mas inteiro”, declamado por Gorman, mostrava-se, longe do Capitólio, mesmo com tantas medidas de segurança que lembravam a cada passo o momento sombrio de 6 de Janeiro e o perigo que a democracia dos EUA correu, na praça Black Lives Matter, que traz o nome de um movimento que pediu nas ruas o direito dos negros a respirar.

“Parece que me tiraram uma tonelada de peso dos ombros”, dizia à Reuters Tiffany Wade, chegada desde o Alabama, com a mãe e a filha, só para estar na capital para o novo capítulo da América.

O FBI prendeu esta quarta-feira mais um membro do grupo de extrema-direita Proud Boys no âmbito das investigações à invasão do Capitólio. No entanto, Joseph Randall Biggs, foi detido longe da capital norte-americana, na mesma Florida para onde Donald Trump se retirou sem assistir à tomada de posse do seu sucessor.

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