América em carne viva

A História mostrou-nos vários casos em que se foi da luta armada para a conquista do poder. Nos EUA de 2021, os fiéis a Trump parecem dispostos a passar do poder para a luta armada. A 20 de janeiro de 2017, data da posse, escrevi artigo com o título: “Bem-vindos à era do caos”. Alguns amigos perguntaram-me se não teria exagerado. Infelizmente, não.

“Um paranóico inteligente pode ser muito persuasivo” 

Embaixador José Cutileiro

8 de novembro de 2016 foi a data do choque que muitos nunca julgaram ser possível: Donald Trump atingia a Casa Branca.

6 de janeiro de 2021 será recordado como o dia negro em que a “revolução populista” incitada pelo Presidente gerou uma impensável invasão à casa da democracia. Maeve Reston, na CNN, chamou-lhe “o dia em que a América percebeu finalmente como Trump é perigoso”.

Em 2016 a vitória de Trump começou por parecer chocante e havia que fazer processo de integração do inaceitável. Os republicanos viram-no como corpo estranho no início das primárias e tiveram que o ir absorvendo. Passaram da estranheza para constrangedor apoio, revelado até nos momentos em que isso era inaceitável.

A “trumpização” dos republicanos foi tão forte que, mesmo nas semanas após a derrota, a maioria continuou com ele na narrativa disparatada da fraude. O telefonema inacreditável de Trump a pressionar o secretário de Estado da Geórgia terá excedido, em gravidade, o que aconteceu no Watergate. Valeu a imparcialidade firme do Brad Raffensperger, um republicano.

Durante demasiado tempo, demasiada gente quis acreditar que “se calhar Trump não é assim tão mau como dizem”. Mas é.

Trump andou quatro anos a legitimar grupos extremistas como os Proud Boys. Chegou a fazê-lo num debate presidencial. A “revolução populista”, desenhada por Bannon e liderada por Trump, baseava-se na ideia de que era preciso “dinamitar as instituições” para “devolver o poder ao povo”. Deu nisto.

A palavra do Presidente dos EUA tem força. Não é inócua. Gera consequências. E elas estão à vista.

As “duas Américas” estão a caminhar para que uma comece a descolar no que é essencial: deixa de acreditar que o outro lado ganhou mesmo, deixa de acreditar em factos e evidências, deixa de acreditar nas instituições.

Em toda a sua vida, sempre que perdeu Trump declarou vitória. Em 2016, fez isso no Iowa a Ted Cruz. O mesmo Cruz que agora jura que Biden roubou a eleição a Trump. O “partido da Lei e da Ordem” deixou-se vergar por um líder que não hesitou em tentar dinamitar a democracia americana por mero egoísmo pessoal.

O que está em causa é uma cisão não oficial entre uma parte dos republicanos que se mantém dentro do estado de Direito e da razão eleitoral e outra, herdeira do “trumpismo”, que se deixou arrastar para uma esfera antidemocrática.

Para compreendermos o que aconteceu não devemos cingir-nos à questão política: o combustível foi o negacionismo, a cultura do “whataboutism”, as conspirações QAnnon sobre “democratas pedófilos e sociedades secretas a tirar o poder ao povo”. Sheryll Cashin, no “Politico”, põe o dedo na ferida: “Há um termo para classificar o que aconteceu no Capitólio: ‘Whitelash’ (reação branca). Depois da “derrocada branca” nas eleições na Geórgia, a invasão ao Capitólio espelhou padrão familiar na história americana. A seguir a um avanço dos negros assiste-se à reação em sentido contrário da maioria branca”.

Josh Hawley, senador do Missouri, foi a par de Ted Cruz um dos dois republicanos que mais puxaram pela disparatada contestação à vitória de Biden. O objetivo era claro: sair como herdeiro dos 74 milhões de votos da esfera trumpista. O tiro saiu-lhe pela culatra. Está sob fogo dos democratas, de muitos republicanos -- e até a editora Simon & Shuster recuou na intenção de lhe publicar um livro. A justificação é eloquente: “Não podemos apoiar o senador Hawley depois do seu papel naquilo que se transformou uma perigosa ameaça à nossa Democracia e à nossa Liberdade”.

Ao longo destes quatro anos fui rotulando Trump como um extremista sonso. Os últimos dias deixaram claro este epíteto: a forma como incitou os seus fiéis à insurreição e, horas depois da invasão inominável, tão hipocritamente deles se demarcou diz bem de como não se pode confiar em nada do que diz ou faz.

Sem o “Capitol riot”, Trump estaria na “pole-position” para a nomeação presidencial republicana. Depois de 6 de janeiro a dúvida passou a ser se se aguenta na Casa Branca até dia 20. Nancy Mace, congressista republicana da Carolina do Sul, que trabalhou para a campanha Trump em 2016, sentenciou: “Donald Trump estragou tudo. Isto é não americano”.

2020 foi o ano do sofrimento. Nos EUA, o eleitorado americano premiou Joe Biden, alguém com história pessoal marcada também pelo sofrimento. Obama prometia o sonho ("Yes We Can"), Trump falava de uma América de pesadelo ("American Carnage"). O novo Presidente americano não exige proposta mobilizadora (Obama) ou transformadora (Trump). Biden não oferece sonho nem pesadelo. Apenas baixar a temperatura e devolver a dignidade à função presidencial. Terá dois anos para travar a polarização extrema e encontrar algum caminho comum.

Pelo menos até às intercalares de novembro de 2022 disporá de quadro político muito favorável: os democratas vão dominar a Casa Branca, a Câmara dos Representantes e o Senado. As presidências Clinton (1993-2001), Obama (2009-2017) e Trump (2017-2021) têm um ponto em comum: estes três presidentes tão diferentes tiveram o mesmo destino político nas eleições intercalares do primeiro mandato – a derrota.

As “midterms” de 2022 serão momento-chave: será que os republicanos vão conseguir reencontrar um caminho de triunfo eleitoral até lá, ou pode Biden ser o primeiro Presidente em duas décadas, desde George W. Bush, a manter o controlo das duas câmaras do Congresso nos quatro anos do primeiro mandato?

Dias depois de se saber a resposta para essa dúvida fundamental, haverá momento de forte simbolismo: a 20 de novembro de 2022, Joe Biden completará 80 anos. Nunca um Presidente dos EUA em funções chegou sequer perto dessa idade. Talvez aí fique claro se vai mesmo abdicar de buscar um segundo mandato.

Quem tenha estado minimamente atento ao que foram os quatro anos desta presidência inaceitável não pode ter ficado surpreendido com a invasão do Capitólio. Quarenta e cinco por cento dos eleitores de Trump apoiam-na. Isso representa 33,3 milhões dos 74 milhões de votos no Presidente derrotado. É esta América em carne viva que Donald Trump deixa como legado miserável.

O que se perdeu em quatro anos não se recupera em quatro semanas ou meses. Se calhar, nem mesmo em quatro anos.

A “maldição das duas Américas” está cada vez mais funda -- e ficará como herança pesada para o futuro Presidente Biden.

Há quatro anos, na despedida em Chicago, Obama proclamou no fim da sua presidência: “Yes we did”. O seu sucessor acaba o mandato com o vice-presidente a ponderar acionar a 25.ª Emenda.

Que diferença.

Autor de quatro livros sobre presidências americanas

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