Da incapacidade endógena
Um ato de retirada de consequências políticas é, antes do mais, um ato de dignidade do titular do cargo que, como alto responsável, sabe ser, independentemente de culpa sua, aquele a quem compete assumir os factos gravosos ocorridos sob tua tutela.
O ano que agora inicia apresenta-se-nos com um verdadeiro paradoxo político. Deixou-nos 2020 com a aprovação do Orçamento de Estado, isto, apesar da quebra da “geringonça” que suportou o Governo socialista durante cinco anos; fator de aparente afirmação do Governo. E entra 2021 com o início da presidência portuguesa da UE, que fará por seis meses o Governo assumir uma posição evidente responsabilização e preponderância na cena política internacional.
No entanto – e é esse o paradoxo – o Governo vive a sua fase de maior fragilidade.
Em cenário de pandemia, em contexto causador de fortes quebras na economia e no emprego assentes em motivações exógenas à própria governação, é expectável que os executivos possam conhecer um período de maior fragilização. No entanto, estranhamente, não são essas situações que assolam a credibilidade do Governo de Portugal, mas antes condições endógenas, por si criadas, problemas por si adicionados aos já muitos problemas que tem em mãos para solucionar. Reveladores, além do mais, da impreparação para lidar com os tempos que nos esperam.
Em 12 março morreu um cidadão ucraniano às mãos do Estado Português. Ihor Homeniuk, detido nas instalações do SEF, veio a falecer em circunstâncias com contornos que envergonham o Estado Português. “É absolutamente inaceitável que o pior atentado aos direitos humanos de que tenho memória desde o 25 de abril tenha ocorrido pela mão do Estado”, escreveu a deputada socialista Isabel Moreira em artigo que assina no Expresso.
Poder-se-ia afirmar que Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, não tem culpas diretas num caso desta natureza, com o que sou obrigado a concordar. Mas o mesmo não se pode dizer da afirmação do MAI, perante o Parlamento, de que ordenou uma “averiguação interna” no dia 13 de março, dia seguinte à morte de Ihor quando, segundo a IGAI, vem-se a verificar que apenas o fez no dia 30 de março, depois dos factos virem noticiados na comunicação social. O mesmo não se pode dizer de o MAI nada tenha feito até dezembro, dez meses depois dos trágicos eventos, nem foi decidida a indemnização à família, nem foram tiradas quaisquer conclusões, nem sequer assumida a postura educacionalmente exigível de um pedido de desculpas público pelo Estado Português. Nada. No entanto, decorrente de uma insistente investigação jornalística, quando surgem notícias a dar conta de que as práticas que conduzirem à morte de Ihor não foram, afinal, uma casualidade, facto que obrigaria o Governo e o próprio MAI a tirar imediatas consequências políticas, ao invés de o fazer, sucedeu-se uma catadupa de reações apressadas e impreparadas entre as quais se destaca, no domínio do anedótico, o “golpe de asa” de Eduardo Cabrita ao sugerir criar um “botão de pânico” nas instalações do SEF. Só então, só em dezembro e na pendência da pressão da comunicação social é que o conselho de ministros, dez meses depois, definiu a correr a indemnização à família de Ihor Homeniuk.
Estes factos, pela sua gravidade, reiteração e sobretudo pela inação do ministro, seriam suficientes para que fossem retiradas consequências políticas. Mas não com António Costa.
Nos últimos dias temos tido conhecimento de que a ministra da Justiça, com vista a interferir no processo de escolha do Procurador Europeu português, municiou o Comité de Seleção do Conselho Europeu de um conjunto de factos cuja falsidade Francisca Van Dunem não podia desconhecer (até por não constarem no CV de José Guerra). Uma autoridade pública nacional declarar perante uma autoridade pública europeia que um determinado candidato, preterido por esta entidade à qual compete a escolha, tem uma categoria profissional que não tem e que participou em processos de investigação a processos de desvio de fundos comunitários em que não participou, é um facto de uma gravidade inaudita, que só mesmo num país onde, ao invés do princípio da responsabilidade vigore o princípio da irresponsabilidade, se pode compreender. Esta atuação já é de si suficientemente vexatória num Estado civilizado, mas quando, para mais, ela abusa da boa-fé da instância europeia que, confiando em Portugal, altera a sua escolha, esta postura atinge foros inacreditáveis.
Isto não são “lapsos sem relevância” como os batizou o primeiro-ministro. Até porque a sua relevância é-lhes atribuída pelo condão que tiveram de alterar a decisão do Comité de Seleção. Foram, por isso, factos cuja relevância foi bastante para alterar uma decisão de uma instância europeia. O que é uma consequência gravíssima. Para mais, alteraram a decisão no sentido daquilo que o Governo português pretendia. Notável de facto.
Mas mais notável ainda é que de um comportamento a todos os títulos censurável e que envergonha Portugal face aos seus congéneres europeus, numa altura em que tem início a nossa Presidência da UE, não são retiradas quaisquer consequências políticas.
É preciso dizer que os partidos de oposição não retiram ganho de causa quando ocorre a demissão de um ministro. Não faz o partido do poder descer vertiginosamente nas sondagens ou os da oposição subir. Do que se trata é de decência democrática, ou da também designada ética republicana.
Ensinamos os nossos filhos de que devem ser responsáveis pelos seus atos. De que os erros fazem parte da vida mas que, quando eles são cometidos, devem assumi-los e sujeitar-se às consequências. Que exemplo dão os governantes de um país, particularmente o primeiro-ministro, quando transmite que deve vigorar este princípio de irresponsabilidade?
Um ato de retirada de consequências políticas é, antes do mais, um ato de dignidade do titular do cargo que, como alto responsável, sabe ser, independentemente de culpa sua, aquele a quem compete assumir os factos gravosos ocorridos sob tua tutela.
Aquilo a que temos assistido é a um lamentável “sacudir da água do capote” ou, visto noutra perspetiva, temos assistido ao Governo a minar as suas próprias condições e legitimidade políticas. É um Governo não propriamente pressionado por circunstâncias políticas exógenas mas que cria pressão sobre si próprio. Um Governo com governantes diminuídos na sua auctoritas e na sua respeitabilidade institucional, cujas condições políticas não os permitem ser capazes de tomar em mãos a gestão de pastas de soberania de importância nevrálgica. Um Governo de gestão de quotidiano, imediatismo, contemplativo face ao futuro.
Não é com certeza o Governo de que precisamos para lidar com a fase muitíssimo exigente que advirá ao aftermath da pandemia da Covid-19 e, sobretudo, para gerir os fundos extraordinários vindo da UE com o seu potencial de mola propulsora para retirar o nosso país do marasmo evolutivo em que estamos mergulhados há décadas.