O novo confinamento voltou a decretar o encerramento, com um horizonte temporal previsível de pelo menos mais 30 dias, de todos os equipamentos culturais do país. A este mês de portas fechadas, somam-se os de Março, Abril e Maio de 2020, e desde Junho uma actividade permitida com lotação reduzida, em dias sem recolher obrigatório e com circulação permitida entre concelhos. Quer isto dizer, que não haverá nem cinema, nem teatro, nem dança, nem nenhum tipo de concerto ao vivo, em nenhuma sala, grande, pequena ou independente, e que essa “multidão do precariado” entre actores, bailarinos, músicos, coralistas, encenadores, cenógrafos, desenhadores de luz, aderecistas, electricistas, produtores, coreógrafos, técnicos de som, técnicos de vídeo e muitos outros trabalhadores das artes do espectáculo ficará, uma vez mais, impedida de trabalhar.
O PÚBLICO recordava aqui, com base em informação estatística disponibilizada pelo Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC) e relativa ao ano de 2018, que teriam o estatuto de independentes cerca de 40 mil trabalhadores do espectáculo. Em Abril, o então recém-criado movimento “Unidos pelo presente e futuro da Cultura em Portugal”, apelava ao reforço das medidas de emergência perante o estado de calamidade instalado no sector. Em Maio, o dia-a-dia desses trabalhadores, na verdade, sem trabalho, era “fazer contas à vida”, o que mal se consegue com um apoio apertado de três vezes 438 euros como medida de apoio social, perfazendo um total de 1314 euros e que, mesmo assim, não chegou a todos.
A partir daí, muitas dessas vidas levadas no fio da navalha da sobrevivência terão melhorado com a retoma da actividade no Verão, mas não muito. E agora volta a incerteza, e nova ameaça de falência de mais artistas, das suas estruturas, da Cultura. Até se podia aceitar o acerto da medida, que não se pode, quando se autoriza que os locais de culto permaneçam abertos para celebrações religiosas. Nem a ironia de sabermos, por exemplo, que em outros tempos da História muito teatro se fez nas igrejas e nos seus adros suaviza estes dois pesos, duas medidas. Fica o espanto, que só uma peça ao estilo de Rhinocéros de Ionesco seria capaz de provocar.
Se não há evidência científica que apoie a razão do que se decidiu, e parece que não há, talvez a decisão tenha sido tomada comparando culto e espectáculo por uma régua do que se pode sentir, e não se devia, quando chega um novo confinamento. Num local de culto não há público, só crentes. Num local de culto não se aconchegam pernas e corpos em cadeiras fofas. Num local de culto não se apagam luzes, iluminam-se consciências. Num local de culto não há risadas, só súplicas. Num local de culto não se batem palmas, as mãos movem-se silenciosas. Num local de culto não se vertem lágrimas de alegria, chora-se de tristeza. Num local de culto não se grita “bravo!”, confessam-se pecados. Num local de culto não se sonha acordado, segue-se o sermão.
Os locais de culto cumprirão as regras da distância física, da etiqueta respiratória, da desinfecção das mãos e do uso obrigatório da máscara e permanecerão abertos, tanto quanto se sabe, todos os dias. Os locais de espectáculo, que só abriam umas poucas tardes e noites em cada semana e cumpriam, exactamente, as mesmas regras sanitárias, permanecerão, já se sabe, fechados. Entre ambos, uma diferença singela: nos locais de espectáculo podia haver instantes de vida despreocupada e emoções. Assim sendo, que outra pena lhes podia ser imposta, que não fosse o encerramento?