Cultura e Ciência
A coesão social passa por promover projetos que eliminem desigualdades e motivem novos públicos.
Hoje, a sobrevivência do setor da Cultura ao confinamento decorrente da pandemia depende de duas ações políticas. Primeiro, têm de ser garantidos apoios enquanto for impossibilitada a regular atividade cultural. Segundo, têm de ser definidos princípios claros e equitativos na distribuição desses apoios. Neste momento, Portugal já pode beneficiar do apoio das instituições europeias e, simultaneamente, está em curso a revisão do Decreto-Lei n.º 103/2017 que estabelece o regime de atribuição de apoios financeiros do Estado, através da Direção-Geral das Artes. Assim, Portugal vive hoje as condições para inaugurar uma nova era na política cultural, mais justa, resiliente, e assente tanto na excelência como na inovação.
É com apreensão que verificamos a irrelevância da Cultura no Plano de Recuperação e Resiliência que o Governo entregou, a 15 de outubro, à Comissão Europeia. Esta omissão entra em contradição com a resolução do Parlamento Europeu, aprovada a 17 de setembro, intitulada “Recuperação Cultural da Europa” que pede tanto à Comissão como aos Governos dos Estados Membros para dedicarem ao sector e às indústrias culturais e criativas o mínimo de 2 % do total do Plano de Recuperação e Resiliência, sublinhando a importância da sobrevivência da Cultura tanto para a identidade dos povos e como para o próprio Produto Interno Bruto da EU, já que assegura 7, 8 milhões de empregos e 4% do PIB. Assim, o PSD entregou, a 23 de dezembro, na Assembleia da República um projeto de resolução apelando para o Governo assumir e cumprir as indicações da resolução “Recuperação Cultural da Europa”, afetando ao sector um valor não inferior a 2% das verbas do mecanismo de recuperação e resiliência que cabem a Portugal, considerando uma dotação previsível de 14 mil milhões de euros em subvenções (entre 2021-2016) aos quais acrescem cerca de 15,7 mil milhões de euros em empréstimos.
Uma vez aprovado o acesso a apoios europeus, cabe aos Estados-membros a garantia de definição de princípios de distribuição equitativos, justos e eficazes. Em Portugal, o Ministério da Cultura tem enfrentado permanentes críticas quanto aos critérios de distribuição de apoios. A atual proposta do Governo para a revisão do Decreto-Lei n.º 103/2017 acaba por ser mais do mesmo, quando poderia ser reformista nos princípios e na ambição.
Os princípios devem pugnar por transparência, independência, excelência, inovação e coesão social. A coesão social passa por promover projetos que eliminem desigualdades e motivem novos públicos. A transparência e independência dependem da inclusão nos painéis de avaliação (júri e comissões de avaliação) de peritos nacionais e internacionais, reconhecidos pelos pares como especialistas nas áreas. Só peritos na área têm capacidade de avaliar o mérito das equipas, a excelência do projeto e o potencial de inovação. A excelência e inovação não podem ser preteridas, seja pelo pré-requisito de antiguidade (“o tempo de constituição”) seja pelo peso do “projeto de gestão” na avaliação da candidatura. O pré-requisito “antiguidade” bloqueia a inovação e o mérito. O critério “projeto de gestão” promove a burocracia de procedimentos que deveriam ser simples e ágeis.
Os paralelos entre Cultura e Ciência podem e devem ser explorados. Na inclusão de peritos, avaliação de processos e distribuição de fundos, a Cultura pode encontrar soluções no caminho que a Ciência já percorreu. No campo da coesão social e motivação de públicos, a Ciência pode encontrar caminhos nos lugares antes percorridos pela Cultura. Criadores culturais e investigadores científicos partilham a ambição de criar conhecimento, trilhando, para isso, caminhos de inovação. Tanto uns como outros convivem com o risco de falhar. No entanto, quando acertam, tanto uns, como outros carregam o potencial de despertar as disrupções necessárias para inspirar, motivar e fazer progredir uma sociedade. Hoje, na verdade, é destas disrupções que Portugal precisa.