O ódio e a Internet
A Internet tem amplificado e normalizado o ódio. Este é um fenómeno que afecta toda a sociedade e a política não é excepção. Não só a expressão e discussão de opiniões são pretextos para ofender e diminuir, como o online contamina muitas vezes o offline , com graves consequências para a democracia.
“És atrasado mental, ou quê? Não queremos esse absurdo que é o euro”; “És estúpida de mais para perceber as leis deste país”; “Não queremos estes governantes canalhas, mentirosos e traidores”; “Acabaste de chamar ‘excremento importado’ aos imigrantes?”; “Os media só servem para alimentar os idiotas com informação inútil”. Estes comentários ilustram o tipo de mensagens com ódio que se encontram com alguma frequência em discussões nas redes sociais. O tom, a negatividade e, claro, o seu teor contaminam o debate político, e a Internet é determinante a espalhar este tipo de narrativas e a normalizar o ódio, porque aumenta exponencialmente o alcance de comentários que até há algum tempo só seriam tolerados em conversas privadas entre alguns grupos de amigos ou conhecidos. O projecto Hate (hate.ics.ulisboa.pt), que coordeno, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, estuda este fenómeno e as suas causas e consequências na política e na participação dos cidadãos.
Considerando o impacto que mensagens de ódio já têm na política e na sociedade, é fácil antever que as aplicações e os usos da Internet hoje influenciem também de forma decisiva os debates políticos e as formas de governação do futuro. A investigação em Ciências Sociais é essencial para documentar e explicar como a realidade está agora a ser moldada pela tecnologia e como este impacto poderá evoluir no futuro e, mais importante, como podemos não só corrigir a normalização da expressão do ódio na Internet, mas sobretudo prevenir outras consequências tão ou mais nocivas.
Historicamente, os media têm sido determinantes para a literacia e para as atitudes políticas. Seria impossível pensar a construção da democracia liberal e a participação política dos cidadãos, tal como as concebemos, sem o desenvolvimento, primeiro, da imprensa escrita, depois, dos meios audiovisuais e, por fim, da Internet. Mas como o ritmo das mudanças tem sido cada vez mais rápido, tornou-se mais difícil acompanhar e dar resposta atempada aos problemas. É assim essencial compreender as potencialidades das várias tecnologias que usamos no dia-a-dia e como estas têm influenciado (e mudado de forma decisiva em alguns casos) a forma como as pessoas pensam, processam e seleccionam a informação, reagem e interagem, como se comportam e como se expressam.
A ênfase deve ser colocada na forma como a tecnologia é utilizada, porque a Internet, por exemplo, pode ser um instrumento valioso para consolidar a democracia ou as autocracias mais variadas. Por isso, quanto mais soubermos hoje sobre os usos da Internet, mais condições teremos para influenciar o futuro, por exemplo, através de propostas de políticas que reforcem os usos positivos da Internet com vista a fortalecer a democracia. Tomando os dias de hoje como referência, porém, as perspectivas não parecem ser as mais animadoras, quer para a qualidade da informação que circula, quer para a tolerância em relação a opiniões diferentes, elementos fundamentais em democracia e sem os quais esta não se concebe.
A informação
Sendo que esta é conhecida como a “idade da informação”, é caso para perguntar sobre o que é que, exactamente, estamos assim tão informados? A Internet provocou o que se pode designar como overload ou excesso de informação: tanto permitiu um maior número de fontes de informação como consequentemente potenciou uma maior quantidade de informação que circula agora com poucos ou nenhuns filtros e barreiras. Para além de ser humanamente impossível tratar toda a informação que está agora disponível, o incremento na quantidade, em muitos casos, não se reflecte na qualidade da informação a que estamos expostos. Nunca como hoje circulou tanta informação falsa e tendenciosa entre um número tão elevado de pessoas e tão facilmente. Nunca como hoje os conteúdos políticos incluíram tanto antagonismo e ódio, o que polariza mais as posições e os debates e torna os compromissos mais difíceis de atingir.
Naturalmente, este problema não se coloca apenas no debate político. Estudos realizados noutros contextos (religião, por exemplo) têm demonstrado como a Internet (inadvertidamente) prejudica a qualidade da interacção humana em geral, porque permite o que é denominado como “ciberdesinibição”. Existe uma desconexão entre a forma como os nossos cérebros estão preparados para se conectar (com os outros em conversas e debates) e o tipo de interface que é usado nas interacções online. Esta falha permite, por exemplo, que a inibição que existe quando estamos face a face desapareça se estivermos online e que todo o tipo de emoções negativas e agressivas sejam manifestadas com muito mais facilidade. O facto de serem permitidas interacções anónimas agudiza, ainda mais, o problema.
A política
Na política, estas condições reforçam as manifestações de populismo. O populismo assenta precisamente no ressentimento e no ódio do “outro”, do que é diferente, e numa necessidade de prevalecer sobre o outro. Esta divisão entre o “nós” e “eles” encoraja frequentemente a demonstração explícita do ódio e favorece a polarização. Alguns autores referem mesmo que vivemos hoje numa época de tribos, mais do que de ideologias, por causa das lealdades acríticas e das intervenções polarizadas de um cada vez maior número de pessoas.
Um bom exemplo desta descrição é o “Brexit”, mas não é o único. Em vários momentos e debates políticos, muitas das pessoas que consideravam as ideias radicais absurdas e perigosas acabaram, elas próprias, por se radicalizar, por exemplo. O seu mundo passa assim a dividir-se entre aliados e inimigos, o que torna a política tribal e especialmente confrontacional.
Naturalmente, a Internet não criou este estado de coisas, mas deu visibilidade a tendências já existentes e acabou por amplificá-las. Existem estudos sobre a propagação do ódio em política muito antes da Internet, e o ódio tem sido, ao longo da história, uma arma, uma táctica para atingir objectivos. As próprias eleições em regimes democráticos são momentos particularmente propícios para potenciar ódios latentes ou desencadear novos. Mas a Internet democratizou o acesso ao espaço público e com isso amplificou os discursos alternativos, normalizando-os, em formas e a um ritmo nunca antes vistos.
Porque há menos filtros, a Internet aumentou assim a visibilidade, mas também as formas de manifestação e propagação de todo o tipo de ideias e sentimentos, ódio incluído. Ao analisar as mensagens que circulam online em várias plataformas é possível comprovar que vivemos num tempo em que as emoções, e em particular as que chocam e provocam reacções, são mais importantes que os factos. Para além disso, a Internet também forneceu mais espaços para a mobilização de estratégias e propagação de mensagens de ódio. Ou seja, democratizou-se a produção de mensagens de ódio, incluindo com intuito comercial e de entretenimento, banalizando a exposição ao ódio e facilitando o seu consumo intencional. Esta tendência estava presente mesmo antes das redes sociais, como demonstra um site com o nome de Martin Luther King que foi lançado em 1999 não por apoiantes, mas pelo fundador do movimento Stormfront, que é conhecido por ser neonazi e por defender a supremacia branca.
Os meios
O que torna estes processos mais complexos é a interacção entre os diferentes tipos de media. A publicação livre na Internet significa um enfraquecimento das estruturas que costumavam filtrar a informação disponibilizada e assim contribuíam para silenciar discursos alternativos tóxicos (ódio, fake news, etc.). Este processo, denominado “lavagem da informação” por alguns autores (ver, por exemplo, o livro de A. Klein intitulado Fanaticism, Racism, and Rage Online: Corrupting the Digital Sphere, publicado em 2017 pela editora Palgrave), significa que todos os tipos de informação coexistem num mesmo ecossistema, tornando por vezes impossível a destrinça entre o que é verdadeiro, falso, ou um híbrido dos dois.
A normalização do ódio e de retóricas extremistas ocorre de duas formas: directamente, através da sua banalização na Internet e nas redes sociais, e indirectamente, através da subsequente cobertura jornalística. Os activistas norte-americanos que compraram espaço publicitário no metro para afixar propaganda antimuçulmana sabiam de antemão que iam ser censurados, mas também sabiam que podiam invocar a Primeira Emenda da Constituição Norte-Americana e usar as redes sociais para disseminar a mensagem e que tudo isso despertaria o interesse da cobertura jornalística. Na Europa, as tentativas de alguns Governos e plataformas de redes sociais para travar o discurso de ódio contra os imigrantes têm sido exploradas pelos nativistas de extrema-direita para comprovar o seu argumento de que existe uma conspiração levada a cabo pelas elites multiculturalistas para calar os receios do povo.
E agora?
Da mesma forma que o ódio que já existia antes da Internet encontrou novas formas de expressão no online, existe também uma grande probabilidade de as manifestações de ódio online, por serem amplificadas e potenciadas, ocuparem novos espaços offline, com graves consequências para a democracia.
Como não estamos perante públicos passivos, o estudo do ódio nos debates online não pode limitar-se às mensagens, é essencial compreender como as pessoas reagem a essas mensagens, porque umas são mais susceptíveis do que outras. É necessário também identificar e compreender as causas subjacentes, porque relacionados com os surtos de ódio online poderão estar (e estão, muitas vezes) ressentimentos estruturais em relação à forma como a política tem sido conduzida, ou reacções contra injustiças e desigualdades.
Em vez de simplesmente reagir aos malefícios causados pela Internet, devemos pensar o que torna a democracia mais saudável e como pode a Internet ser usada para esse fim.
Investigadora de comunicação política; ICS-ULisboa