A ditadura possível
A quem me esteja a ler, católico ou ateu, de esquerda ou de direita, do centro ou da periferia, branco, negro ou assim-assim, pergunte-se a si próprio: quem são exactamente esses tais “portugueses de bem”? E quem são, afinal, os seus adversários?
Dei por mim a assistir a um debate na televisão, do princípio ao fim (coisa rara). De um lado, estava o nosso Presidente da República, do outro o deputado único de um partido que, segundo o próprio, representa “os portugueses de bem”. Simpatizo com o nosso Presidente; como a tantos, também ele um dia me cumprimentou. Apertou-me a mão, olhou-me nos olhos. Senti-lhe a empatia; aquele homem tinha a virtude de estimar os outros. Gostei imediatamente dele, apesar de me sentir vagamente endrominado pela falaciosa aura que sempre envolve o poder. Talvez vote nele.
Quanto ao seu adversário, já sabia que o deputado tinha aquele ar composto e direitinho, que alguns apreciam. Também não me surpreendeu o discurso hábil, fluido, pronto a consumir; Quintiliano garantia que um bom orador seria necessariamente um bom homem, mas infelizmente a história ensinou-nos que não é bem assim. Para grande surpresa minha, fui-me deixando ficar, curioso por saber porque não mudava de canal, como faço quase por instinto quando vejo a personagem nos ecrãs. Talvez fosse pela sua postura mais comedida no debate; talvez fosse porque Marcelo, apesar de tudo, lhe ia dando uma certa dignidade emprestada.
Sobrevivendo aos disparates habituais do ex-comentador da bola, lá fui ouvindo o que dizia. Não era nada, aliás, que nunca tivesse ouvido, de tantas pessoas e em tantos contextos. Não me admiraria que alguns deixassem soltar em suas casas um “ele até tem razão”, de vez em quando. E o senso comum, de facto, tem destas coisas: conforta-nos, faz-nos cócegas no cérebro. Não nos impressiona particularmente que alguém diga “o que nasce torto, nunca se endireita”, ao mesmo tempo que assegura que “a esperança é a última a morrer”.
Mas não; naquele debate – não vi os outros que envolveram a personagem, nem me parece que tenha estômago para isso – dei por mim a pensar: este não era o papão aprendiz de Hitler, o anticristo que chegou para destruir a nossa democracia. E, de facto, perante as imagens que acabava de ver no Capitólio americano, tomado de assalto por uma multidão sem rumo, dominada pela mentira do seu próprio número, acabei por ficar mais tranquilo. Que raio, afinal São Bento ainda não estava sitiado! Uma horda fanática de rebeldes sem causa própria não subia as escadarias do Parlamento, atropelando-se para tirar uma boa fotografia do momento. Tudo isto acontecia lá longe, do outro lado do oceano.
Um ruído de fundo, porém, se ia tornando cada vez mais incómodo. O deputado insistia em falar nuns tais “portugueses de bem”. A expressão chocava-me cada vez mais, especialmente porque, do outro lado, um cristão católico apelava ao Papa Francisco, à memória social-democrata da direita portuguesa, à nobreza do perdão, princípios com os quais aparentemente o deputado não se identificava (ou não queria que o identificassem). Preferia falar nos tais “portugueses de bem”, e nos “outros”, e nos “bandidos”.
O mais grave, porém, estava reservado para o fim, e talvez poucos tenham dado por isso, num debate que, pelos vistos, foi um recorde de audiências. O programa já estava a terminar; segundo o sorteio inicial, cabia a última palavra ao deputado que sorria com desdém da expressão “um Presidente de todos os portugueses”. Escapou-se-lhe uma frase aparentemente inócua, talvez um mero jogo de entendimentos. Não acho que a devamos esquecer. Marcelo falava no perigo da ditadura. O deputado contrapôs: “a única ditadura que eu quero é a ditadura em que os portugueses de bem são pela primeira vez reconhecidos como tal”. Uma doença não mata logo quem habita; a sua estratégia é diferente. Insinua-se e espalha-se até ao dia em que já ninguém a controla: o último ano deu-nos um exemplo demasiado vivo desta realidade – quer o vírus da covid, quer o de Trump. Claro que o deputado, engravatado pelo sistema que tanto diz odiar, não é a doença, apenas a mais recente vítima de uma enfermidade tão antiga como o próprio homem: o desamor, irmão da tirania.
A quem me esteja a ler, católico ou ateu, de esquerda ou de direita, do centro ou da periferia, branco, negro ou assim-assim, pergunte-se a si próprio: quem são exactamente esses tais “portugueses de bem”? E quem são, afinal, os seus adversários? Quantos desses monstros conheceu na sua vida? A quantos apertou a mão? Quais os seus nomes? Serão muitos? Serão poucos? Quanto imaginado não será o seu inimigo? E se chegar à conclusão de que, de facto, vivemos num país poluído, contaminado, dominado por “bandidos” e “portugueses de segunda”, e que os “portugueses de bem” têm o dever de os perseguir, sitiar, fazer-lhes a guerra, de os pôr na prisão, castrá-los, calá-los ou deportá-los, então talvez o tal deputado tenha razões para suspirar por uma ditadura assim. Mas nesse dia não me prenda. Que não me matará, estou mais ou menos convicto: é que o grande líder admitiu, do alto da sua nobreza, que a pena de morte talvez não fosse grande ideia. Não sei se concorda. Mas, por favor, não me enrede na infalível ciência da sua bondade... Não gosto de sítios acanhados. Sou culpado, já sei, e é melhor confessá-lo logo: talvez venha a conseguir o perdão impossível da sua grandeza. É que se ser “um português de bem” é defender as coisas que este senhor diz, então eu não sou certamente “um português de bem”, nem o nosso próximo Presidente da República.