Um endémico descrédito
Portugal poderá, até, vencer – ainda que com elevados custos – esta conjuntura pandémica, mas não parece conseguir vencer esse endémico descrédito que, há muito, o mantém doente, periférico e resignado.
Apesar de covid-19, distanciamento e pandemia terem dominado, circunstancialmente, o nosso léxico e as nossas vidas no ano que terminou, há um vocábulo que é perene na caracterização daquilo em que, estruturalmente, nos tornámos enquanto sociedade, e esse vocábulo é descrédito.
E este é um vocábulo de extrema perigosidade para os quotidianos actuais e potencialmente letal para a organização e valores sociais futuros, pela sua endémica penetração nos mais variados estratos da vida pública e privada e nas diferentes instituições formais e informais.
Porque uma sociedade, qualquer que ela seja, e em qualquer época, necessita de referenciais de segurança e de modelos de conduta.
E não se confunda esta necessidade de referenciais e modelos, com quaisquer pretensões de totalitarismo e unanimismo, porque quem insiste nessa confusão são, normalmente, aqueles a quem a ausência desses referenciais e desses modelos estruturantes serve para que prossigam, impunemente, nos seus embustes e torpezas
Porque na verdade, esta retórica adversarial acaba por funcionar como uma espécie de circo, com que se vai distraindo o povo. Ora, como se sabe, nada como pão e circo, para desviar e amolecer as atenções prestadas ao que é, de facto, essencial. E neste ponto sim, parece existir uma convergência transversal, da esquerda mais extrema à direita mais radical: distraia-se o povo!
Entretanto, enquanto decorre esse sempre pouco edificante espectáculo circense das acusações ideológicas e “ad hominem”, as instituições que deveriam ser referenciais e modelos, perdem a credibilidade.
Perdem-na por entre alegadas “irregularidades” na nomeação e colocação de magistrados – e o que se pode esperar de um país que vê o poder judiciário arrastado no lodo da corrupção e do compadrio? – ou por entre gestões públicas premiadas pela sua danosidade para o orçamento de um Estado, que somos todos nós e, sobretudo, as nossas carteiras.
Ou perdem-na, a essa credibilidade, perante o desnorte de medidas anunciadas e retiradas, ditas e contraditas, num intervalo de horas, naquilo que só pode ter uma de duas interpretações: incompetência ou má-fé (absolutas, em qualquer dos casos).
A que referenciais e modelos poderemos ater-nos, quando órgãos de polícia criminal se desentendem entre si e com as suas tutelas, em matérias fundamentais?
Ou quando se constata a percepção generalizada da Justiça como sendo injusta e, muitas vezes, cobarde, porque fraca com os fortes e forte com os mais fracos?
Quais os referenciais e modelos que poderemos transmitir aos nossos filhos, quando se constata que o trabalho honesto, rigoroso e qualificado não permite atingir um patamar real de classe média (no que esse conceito significa em matéria de bem-estar e qualidade de vida)?
Quais os modelos transmitidos num sistema de educação ancilosado e preso no facilitismo da produção de estatísticas, que nos deixem ficar bem no retrato da família europeia, essa família em que parecemos estar condenados a ocupar o eterno papel de parente pobre, ataviado com roupa domingueira e exibindo tiques de novo-riquismo, como se vivêssemos num permanente Agosto de férias e romarias?
Quais os referenciais que poderemos transmitir em famílias exaustas e impotentes, porque verdadeiramente desapoiadas (financeiramente e em disponibilidade de equipamentos sociais) naquelas que são as suas funções primeiras e inalienáveis: o afecto e o cuidado, quer às suas crianças, quer aos seus velhos?
E os exemplos suceder-se-iam, para todos os gostos e nas mais variadas dimensões de um país que poderá, até, vencer – ainda que com elevados custos – esta conjuntura pandémica, mas não parece conseguir vencer esse endémico descrédito que, há muito, o mantém doente, periférico e resignado.