Ainda o estranho caso do Novo Banco (II)
A “venda forçada” do Novo Banco comportou riscos que se reflectiram no contrato assinado com a Lone Star. São inúmeras as dificuldades que esperam esta nova auditoria do Tribunal de Contas.
1. A globalização foi acompanhada por uma complexidade crescente da actividade financeira que colocou as autoridades de supervisão perante problemas novos de difícil acompanhamento e controle. Mesmo depois de todo o esforço que se seguiu à crise financeira de 2007/8 – que passou pela aprovação de novos quadros jurídico/regulamentares de enquadramento dos intermediários financeiros e dos próprios mercados e pela reorganização técnica e operacional dos sistemas de supervisão prudencial e comportamental –, a opinião pública continua a ser surpreendida pelo colapso inesperado de instituições financeiras importantes, em condições que põem directamente em causa a eficácia da actuação de auditores externos e de supervisores. A queda recente da mais importante e prestigiada “fintech” alemã – Wirecard –, provocada por uma enorme fraude financeira que apanhou de surpresa os supervisores, é um exemplo significativo.
Na generalidade dos países que se têm debatido com este tipo de problemas, a actuação dos respectivos sistemas de supervisão – supervisores dos mercados bancário, de capitais e dos seguros – tem sido submetida a um escrutínio e a uma avaliação independente, sobretudo com o objectivo de perceber o que correu mal e de procurar assegurar que tais situações não se repetem. Entre nós, no entanto – como referi já no artigo anterior –, tal avaliação permanece por fazer. Como resultado, avolumam-se as dúvidas e as suspeições com o inevitável desgaste da imagem e do prestígio de instituições centrais, como é, em particular, o caso dos reguladores e dos supervisores dos mercados financeiros. Para além da resistência à mudança, na medida em que para mudar é necessário começar por identificar e reconhecer o que correu mal.
2. O banco BES era o elemento central de um conglomerado – financeiro e não financeiro – construído sobre uma base inadequada de capital e muito alavancado por dívida que colocava as autoridades de supervisão perante problemas de complexidade sem paralelo no nosso sistema financeiro. Sem que tal isente a gestão do grupo de responsabilidades próprias, a supervisão subavaliou repetidamente tal complexidade. A decisão de “cortar” as ligações entre o banco e a área não financeira sem um adequado programa de intervenção é um exemplo. Na verdade, dado o elevado nível de alavancagem do grupo e a natureza dos problemas com que este se debatia, tal “corte” ameaçava precipitar o colapso da área não financeira, com fortes efeitos colaterais negativos sobre o “activo” que se pretendia proteger – o BES.
3. A decisão do Governo da altura de não se envolver no colapso do GES e de deixar ao Banco Central/Supervisor a responsabilidade de procurar uma solução para o banco teve, por sua vez, múltiplas consequências: reduziu o poder negocial junto da Comissão Europeia e, em particular, junto da poderosa Direcção Geral de Concorrência num momento crítico – em que dava os primeiros passos o novo quadro jurídico/regulamentar com que foi lançada a União Bancária e que passou a regular as operações de resolução de bancos em dificuldades; afastou a via da intervenção sobre o banco anteriormente referida e que só seria viável com o suporte de uma decisão política; para além disso, condicionou as opções do Governo que lhe sucedeu, que encontrou um quadro já marcado pelo processo negocial entretanto conduzido com Bruxelas.
Esta posição do Governo “empurrou” para a procura de um comprador, uma vez que a alternativa seria uma liquidação com graves riscos de instabilidade para todo o sistema financeiro que, a verificar-se, teria reflexos inevitáveis sobre toda a actividade económica. Acresce que a solução da venda era a preferida da tecnocracia europeia, a quem a União Bancária abrira novas oportunidades de exercício de poder sobre os Estados-membros que enfrentavam dificuldades.
Foi neste contexto que o Banco Central/Supervisor aceitou assumir a responsabilidade de concretizar a venda, enquanto conduzia uma operação que se propunha sanear e reequilibrar o banco. Tendo presente uma responsabilidade estatutária central – a preservação da estabilidade do sistema bancário –, desenvolveu uma operação de resolução desenhada com a preocupação de proteger um “grupo chave” de credores – os depositantes. O que, por sua vez, conduziu a uma solução que passou pelo “corte” do balanço do BES e pela criação do Novo Banco destinado à venda. Operação de grande complexidade e risco – tanto de um ponto de vista técnico/operacional como jurídico.
4. A primeira tentativa de venda do Novo Banco já havia mostrado ser muito difícil procurar atribuir um “valor razoável” ao banco que resultara da partilha do balanço do BES. O contexto macroeconómico, por um lado – ainda muito marcado pela crise financeira e pelo impacto depressivo do programa da troika –, e a complexa estrutura patrimonial do Novo Banco, por outro, desaconselhavam uma venda rápida. A decisão de prosseguir transformou-a numa “venda forçada” com riscos que se reflectiram no contrato assinado com a Lone Star. Contrato com compromissos e garantias que transformaram a venda numa operação muito desequilibrada, em que os riscos ficaram praticamente todos do lado do vendedor. Contrato que continua sem ser integralmente divulgado.
No entanto, mesmo depois da concretização da venda, uma parte dos problemas actuais poderia ter sido evitada se tivesse sido assegurado um controle adequado das condições em que foi activado o chamado “mecanismo de capital contingente”. Na verdade, a não participação do accionista minoritário – o Fundo de Resolução – na administração do Novo Banco deixou a gestão directa das carteiras de crédito garantidas pelo Estado entregue a uma administração escolhida pela Lone Star. A decisão de vender os créditos garantidos em “pacotes” – onde são misturados com activos não garantidos – é um exemplo de uma actuação que não devia ter sido possível. Torna, em particular, muito difícil qualquer tentativa posterior de avaliar se as vendas dos créditos garantidos foram realizadas a preços que reflectiram, ou não, o seu valor real. O argumento de que esta metodologia foi adoptada para ocultar dos potenciais compradores os activos garantidos pelo Estado não se entende. A não ser que se aceite que apenas os compradores determinam os preços a que as vendas se realizam!
Se considerarmos ainda os conflitos de interesses que até hoje não foram esclarecidos, compreendemos a natureza das dificuldades que esperam esta nova auditoria do Tribunal de Contas.