O regresso a casa: Do espaço físico ao espaço social feminino
Hoje, a pandemia redefiniu mais uma vez a forma como o espaço afeta a vida de todos, mas, de forma mais intensa, o da mulher, por assistirmos ao seu regresso ao espaço doméstico, acumulando funções: trabalhadora, cuidadora e mãe.
O espaço da mulher na sociedade variou ao longo do tempo, na sua dimensão e relevância. A arte, nas suas múltiplas manifestações, desde a literatura à arquitetura, oferece-nos o testemunho dessa evolução.
Na época medieval, Christine de Pizan descreve uma cidade que acolhia mulheres pelos seus feitos políticos e militares. Através da construção deste espaço alegórico, Pizan reagiu à misoginia intrínseca daquele momento na história. A relação entre o espaço e a posição da mulher foi transversal e, quinhentos anos mais tarde, Perkins Gilman constrói um país idílico, “Herland”, onde só mulheres exerciam cargos de poder. A construção de espaços serviu de instrumento de reação ao estatuto da mulher na sociedade refletindo a tendência da representação do espaço feminino utópico.
Em 1929, Virginia Woolf publica A room of one’s own, ensaio que reivindica um espaço feminino para o exercício da profissão numa área em que o trabalho era dominado por homens.
A conquista gradual das mulheres quer de um espaço literal quer de um espaço social, da esfera íntima à esfera pública, é o tema da nossa reflexão.
Veja-se o harém: um espaço destinado às mulheres na cultura árabe. Embora na cultura ocidental não haja nenhum correspondente, não esqueçamos que a cozinha foi, durante séculos, associada, quase em exclusivo, ao sexo feminino. Testemunho disso é a cozinha de Frankfurt, concebida em 1926 por Ernst May e elaborada por Margarete Schütte-Lihotzky. Esta cozinha foi projetada tendo como referência o corpo de uma dona de casa de estatura média, o que levantou questões relativas à igualdade de género.
Entrando na esfera social, tomemos o exemplo da escola de artes Bauhaus, criada como um espaço aberto a todos. Para Gropius aquele seria um espaço sem distinção entre o sexo belo e o sexo forte, uma definição que, desde logo, implica uma discriminação estrutural. Ainda que com algumas restrições, a Bauhaus ofereceu uma das primeiras oportunidades para as mulheres desenvolverem competências nas artes, fora das suas casas. Este foi um movimento de externalização da vida académica e laboral da mulher que se acentuou ao longo do século XX, também como resultado das Guerras Mundiais.
Hoje, a pandemia redefiniu mais uma vez a forma como o espaço afeta a vida de todos, mas, de forma mais intensa, o da mulher, por assistirmos ao seu regresso ao espaço doméstico, acumulando funções: trabalhadora, cuidadora e mãe. O confinamento e o teletrabalho exigiram que em casa se construíssem, de forma improvisada, escolas e escritórios. A reorganização do espaço físico e familiar significa, frequentemente, mais horas de trabalho gratuito para o sexo feminino.
O regresso a casa acabará como a única oferta laboral para muitas mulheres. Este é um problema de desigualdade de género, mas que se revela, sobretudo, através da desigualdade socioeconómica. Numa família com rendimento baixo em que, provavelmente, o teletrabalho não é opção, a reestruturação espacial exige sacríficos quase impossíveis. Desaparecendo os limites espácio-temporais para o exercício das diferentes funções, o dia-a-dia da mulher em tempos de pandemia será tanto mais desafiador quanto menor for o tamanho e a qualidade do espaço físico da casa.
Recusando ingenuidades idílicas que apontam para futuros idealizados, a pandemia pode motivar a alteração dos padrões de posicionamento do espaço da mulher na sociedade. E, com um certo otimismo, esta pode ser uma oportunidade para repensar as estruturas físicas e sociais, tendo em vista a construção de uma realidade cada vez mais igualitária.
As autoras escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico