Do “Portugal Velho” ao “Portugal Novo”: um dicionário dos 200 anos da Revolução Liberal Portuguesa de 1820
Nas últimas décadas, a investigação histórica tem vindo a restaurar, até certo ponto, a ideia de que a Revolução de 1820 foi um marco de profunda ruptura. É essa grande mudança que pretende abarcar o projecto do Dicionário Crítico da Revolução Liberal Portuguesa (1820-1834).
No dia 24 de Agosto passaram 200 anos sobre o levantamento militar no Porto, que daria origem ao que, depois, ficou conhecido por “Revolução Liberal Portuguesa”. Em meados do século XIX, o historiador Alexandre Herculano considerou-a a maior mudança política e social em Portugal desde a Idade Média. No século XX, a historiografia marxista tendeu a subestimar o impacto dos governos liberais e a amplificar todo o tipo de continuidades entre o Antigo Regime do século XVIII e o novo Estado Liberal do século XIX.
Nos últimos 40 anos, porém, a intensificação da investigação histórica, quer sobre o liberalismo oitocentista, quer sobre o Antigo Regime, ajudaram a reconsiderar a Revolução de 1820 e restauraram, até certo ponto, a ideia de Herculano de que se tratou de uma enorme transformação social e política e de uma profunda ruptura com o que tinha sido o passado português. É essa grande mudança histórica que pretende abarcar o projecto do Dicionário Crítico da Revolução Liberal Portuguesa (1820-1834).
Uma transformação social e política
O que aqui designamos como Revolução Liberal não é simplesmente um acontecimento — por exemplo, o pronunciamento militar de 24 de Agosto —, mas um processo, encetado por essa iniciativa das Forças Armadas e depois continuado por várias décadas ao longo do século XIX. A Revolução de 1820 culminou na consolidação de um regime, a monarquia constitucional, cujos líderes se passaram a chamar a si próprios “liberais”, e que efectivamente transformaram, através de legislação, as instituições e os princípios da vida portuguesa. Não só mudaram o conceito de Estado e a própria relação dos portugueses com o Estado, mas também alteraram o estatuto da nobreza, do clero e de todos os corpos intermédios, como os municípios e as corporações.
Embora tenham mantido alguns dos andaimes do Antigo Regime, como uma Igreja oficial, uma nobreza titular ou a prática da escravatura no espaço do império, o facto é que os liberais revolucionaram a sociedade portuguesa num sentido profundo e radical. Afirmaram um ideal cívico quase republicano do Estado como uma comunidade de cidadãos livres e iguais, embora o conceito de cidadania fosse ainda restrito a uma elite de homens: as mulheres, os mais pobres, os analfabetos e as pessoas escravizadas não faziam parte desta comunidade. E erradicaram legalmente o Antigo Regime de ordens sociais e instituições tradicionais.
Tratou-se de um processo estendido no tempo e caracterizado por uma agreste divisão política e por momentos de enorme violência — como sucessivos golpes de Estado com participação do Exército (em 1820, 1823, 1824 e 1828) e recorrentes erupções de guerra civil (em 1822-1823, 1826-1828, 1832-1834) — resultando mesmo em intervenções estrangeiras, como em 1826-1827, ou em 1834.
A Revolução Liberal desenvolveu-se também em articulação com grandes mudanças no contexto internacional e respectivas consequências na natureza e configuração do Estado português no princípio do século XIX. Seguiu-se às guerras com a França em território português (1807-1812), que levaram à saída da família real, da corte e do Governo para o Rio de Janeiro em 1807, e depois esteve intimamente relacionada com a independência do Brasil em 1822.
O que quer dizer que a Revolução Liberal foi também o processo através do qual a monarquia portuguesa, um Estado intercontinental (Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves) até aos anos 1820, se teve que reconfigurar como um reino europeu de média dimensão, com necessidade de se adaptar a recursos fiscais e populacionais mais limitados, uma vez que as restantes possessões coloniais em África e na Ásia de modo nenhum puderam compensar a separação do Brasil. As reformas liberais foram também parte desse processo de adaptação.
Estudar a Revolução Liberal
O liberalismo foi tradicionalmente estudado do ponto de vista do constitucionalismo e dos grandes códigos de leis, com muita atenção devotada aos textos constitucionais de 1822 ou de 1826 e às suas soluções em termos de enumeração de direitos ou de organização dos poderes do Estado. É uma perspectiva importante, mas depois dos pioneiros estudos dos anos 1950, 1960 e 1970 — António José Saraiva, Joel Serrão, José Sebastião da Silva Dias, Miriam Halpern Pereira, Manuel Villaverde Cabral, Vítor de Sá, José Tengarrinha, Zília Osório de Castro, José Augusto França, Albert Silbert, Ruben Andresen Leitão, Vasco Pulido Valente, entre outros — a investigação histórica das últimas décadas tem aberto outras vistas sobre o processo liberal.
Desde logo, foi chamada a atenção para o modo como, sob a égide da reforma do Estado, sobretudo durante e depois da guerra civil de 1832-1834, os liberais atingiram certeiramente os fundamentos da influência social e política da nobreza e fidalguia, do clero, das câmaras municipais e de outras corporações. Houve abolições e expropriações que mudaram a paisagem social portuguesa, apesar de Portugal se ter mantido uma sociedade rural.
Os políticos e os escritores liberais tiveram uma noção muito forte da mudança que tinham imprimido à sociedade portuguesa. Como disse Almeida Garrett, o “Portugal velho” morrera e começara um “Portugal novo”. Os liberais viram os seus próprios esforços de reforma do país como parte de uma mudança global no mundo, e foram directamente inspirados por acontecimentos no estrangeiro, especialmente em Espanha e na Europa do Sul. O pronunciamento militar no Porto, em Agosto de 1820, seguiu análogo pronunciamento militar ocorrido em Espanha em Janeiro do mesmo ano. Referências a exemplos espanhóis, franceses e britânicos foram frequentes nos debates liberais. O contexto internacional é, por isso, essencial para compreender a Revolução Liberal portuguesa.
Os debates provocados pelas mudanças liberais envolveram sobretudo uma classe de homens ilustrados, mas acabaram por mobilizar uma parte apreciável da população, não só através dos conflitos políticos a que deram azo, mas também pela intensificação do recurso a mecanismos de comunicação política como, por exemplo, as petições. O regime liberal inspirou o desenvolvimento e o alargamento de uma esfera pública muito dinâmica, com jornais e associações políticas a desabrocharem por todo o reino.
Os governos, por seu turno, também promoveram festas cívicas e pulverizaram o território com monumentos, toponímia e lugares de memória do novo regime liberal. Os próprios adversários do liberalismo seguiram o mesmo tipo de acção política de modo que o paradigma do “cidadão activo” cobriu assim todo o espectro político. Tanto os liberais como os seus opositores coexistiram dentro de uma mesma cultura de patriotismo, desenvolvida durante as Invasões Francesas, e invocaram a nação e as suas liberdades, o que conferiu à política da época da revolução liberal muita intensidade e uma grande capacidade de mobilização cívica.
Isso deveu-se também à importante dimensão religiosa da Revolução Liberal, que as primeiras abordagens à sua história tenderam a subestimar. Os liberais criticaram o poder e a organização do clero, sobretudo das ordens religiosas, que foram sujeitas a impostos pesados nos anos 1820 e depois finalmente abolidas em 1834.
Os inimigos dos liberais acusaram-nos de estarem sob a influência de correntes maçónicas anticatólicas. Os liberais devolveram-lhes a acusação, denunciando-os como agentes de uma conspiração internacional visando a total subjugação das igrejas nacionais a Roma e ao papado. O debate político ficou assim saturado de referências religiosas, que convém revalorizar para compreender as motivações políticas e os movimentos sociais nesta época.
Um dicionário crítico
Foi para fazer um ponto da situação das pesquisas sobre a história da Revolução Liberal, e para lançar novas perspectivas sobre o tema, que um grupo de investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa — Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro, José Luís Cardoso e Isabel Corrêa da Silva — decidiu projectar uma obra que reunisse, sob a forma de dicionário, estudos sobre a emergência da monarquia constitucional e do Estado liberal nas primeiras três décadas de século XIX, combinando vários tipos de história: política, social, económica, cultural, intelectual e dos conceitos.
O modelo adoptado foi o do Dicionário Crítico da Revolução Francesa, publicado em 1989 sob a coordenação de François Furet e Mona Ozouf. Não se trata, portanto, de um dicionário “enciclopédico,” mas “crítico”, o que significa que os textos não correspondem aos tradicionais verbetes sintéticos, mas são, sim, ensaios interpretativos, num número limitado.
A organização do dicionário assenta em seis partes. As cinco primeiras seguem a estrutura do dicionário de Furet e Ozouf: Acontecimentos (Parte I), Actores (Parte II), Ideias (Parte III), Instituições e Dinâmicas Sociais (Parte IV), e Intérpretes, Memorialistas e Historiadores (Parte V). A estas secções, acrescentámos uma VI Parte, inédita em relação à obra francesa, dedicada a Comparações Internacionais. Não é objectivo do dicionário cobrir exaustivamente todos os agentes e eventos do período em causa, mas selecionar aqueles que se reputam por mais relevantes e cuja análise crítica melhor servirá para perceber a revolução.
Com efeito, no dicionário, o leitor encontrará, por exemplo, ensaios sobre a independência do Brasil, a Guerra Civil de 1832-1834, o rei D. Miguel, o duque de Palmela, José Mouzinho da Silveira, Aristocracia e Classe Média, Liberalismo, Desamortização, Escravatura, Igreja e Ordens Religiosas, Maçonaria, Mulheres, Alexandre Herculano e Almeida Garrett, assim como ensaios comparativos entre a revolução liberal em Portugal e nos estados alemães, em Espanha, em França, em Itália ou na China. Poderá ficar surpreendido com a presença de alguns temas, ou lamentar a ausência de outros, mas o princípio da seleção e da limitação do número de entradas faz parte da própria natureza crítica do dicionário.
Cada ensaio incluirá uma “orientação bibliográfica” e remissões para outros ensaios. Prevê-se que a obra formará um volume com cerca de 1000 páginas. Os colaboradores são professores e investigadores de várias universidades, nacionais e estrangeiras, representando diversas tradições intelectuais, várias gerações e distintos pontos de vista. O objectivo é produzir uma obra de referência que sintetize e faça um balanço do caminho percorrido até hoje pela historiografia, mas também que instigue o leitor a desapossar-se de lógicas deterministas ou preconceitos anacrónicos e a compreender os actores, as criações, as motivações e os constrangimentos da revolução sem se sentir decepcionado por aquilo que não alcançaram, nem ávido por ver neles a paternidade do Portugal actual.
Tal como foi em 1989 a ambição de Furet e Ozouf para o seu Dicionário Crítico da Revolução Francesa, em 2020 a ambição do nosso é propor ao leitor que revisite a Revolução Liberal como que percorrendo o século XIX da frente para trás, dispondo-se assim a ver 1820 na extraordinária riqueza das suas propostas e das suas virtualidades. Compreendendo, através de informação e reflexão actualizadas, o momento em que, como disse Garrett, começou o “Portugal Novo” e acabou o “Portugal Velho”.
Historiadores, ICS-ULisboa