O meu Natal não é igual ao teu
Imagine que só pode ver a sua família aos fins-de-semana. Imagine, ainda, que nesse ano uma terrível doença obrigou a que durante vários meses deixasse de poder ir a casa da sua família ou sequer ter visitas e só pelo telefone com eles pudesse falar.
Tudo nos fala de Natal: o frio, as luzes nas ruas da cidade, a música que passa na rádio, os sacos coloridos na mão de quem se cruza connosco por aí, a árvore montada com um presépio aos pés, a ideia de uma lareira acesa ao chegar a casa, a antecipação do sabor do bacalhau e do perú e os cheiros desejados das rabanadas, dos sonhos, do bolo-rei... Nem este tempo mascarado que nos rouba abraços nos impede de sonhar com o Natal em família.
Lá em casa, serão as crianças da família que mais viverão esta quadra, não é verdade? Agora imagine-se no passado e regresse ao tempo em que foi criança: a magia do Natal multiplicou-se por mil, certo?
Peço-lhe só mais um exercício de imaginação: vamos supor que em criança foi separado dos seus pais e levado para uma casa que não é a sua, cheia de adultos que lhe eram estranhos e crianças desconhecidas, passa a frequentar outra escola, deixou para trás os seus amigos e tudo o que lhe era querido. Pode até ter sido separado dos seus irmãos. Disseram-lhe que ali estava seguro e que um(a) Sr(a). Juiz(a) tinha tomado essa decisão para seu bem.
Essa data, esse dia não será esquecido. Imagine que passa a partilhar o quarto com outras crianças e que a sua mãe não está lá para o adormecer à noite nem para o acordar de manhã. Imagine que só pode ver a sua família aos fins-de-semana. Imagine, ainda, que nesse ano uma terrível doença obrigou a que durante vários meses deixasse de poder ir a casa da sua família ou sequer ter visitas e só pelo telefone com eles pudesse falar. Imagine que ficava fechado todo esse tempo nessa casa que aos poucos também é sua, com outras crianças que já começam a ser amigos e com adultos que já não são estranhos e que cuidam de si por turnos.
Todos na casa lavam muito as mãos e desinfetam-nas a toda a hora. Depois, quando o verão já se adivinha, as coisas melhoram um pouco. Volta a poder receber visitas e passado um tempo recomeça a ir a casa aos fins-de-semana. Até passa uns dias com a sua família durante as férias grande! Mas a doença má volta. Agora vamos à escola mas todos têm que usar máscaras que lhes tapam os sorrisos. Na casa grande onde vive, os adultos usam essas máscaras todo o tempo e usam também umas batas esquisitas que os fazem parecer médicos.
As crianças sentam-se a metros de distância umas das outras para comer e muitos dos brinquedos e dos jogos desapareceram porque podem guardar neles a doença. Nas notícias, na televisão, fala-se muito de pessoas muito doentes por causa dessa doença má e de muitos mortos. Há desinfetante por todo o lado e há crianças que passam longos períodos num quarto sozinhos onde só entra um dos adultos da casa. Dizem-lhe que aquela criança está ali porque está em “isolamento profilático”.
Sabe que não pode brincar com aquele/a menino/a e tem medo de poder vir a ser essa criança e ter que ficar sozinho nesse quarto sem poder brincar com ninguém e sem poder ir à escola ou a casa no fim-de-semana. Imagine que só dentro de casa dos seus pais, ao fim de semana, é que não há máscaras (embora se continue a desinfetar e a lavar as mãos muitas vezes e todos as usem na rua). Tem sido um ano triste e difícil para si, mas... vem aí o Natal!!! Imagine os seus sonhos para esse Natal. A vontade de comer as rabanadas feitas pela avó... O tio vestido de Pai Natal...
Os presentes. Imagine agora que lhe dizem que todos os meninos da casa onde vive vão passar o Natal com a família mas que o seu caso é diferente. Explicam-lhe que alguém importante e que existe para defender os direitos das crianças acha melhor que não vá a casa dos seus pais no Natal porque tem medo que, quando regresse, traga a doença má para a casa de acolhimento. Pergunta-se porque é diferente dos outros. Questiona-se porque é que a doença má havia de vir só consigo. Imagine como se sentiria ao ver todas as outras crianças a preparar os sacos e as malas para ir passar as férias de Natal com as respetivas famílias. Conseguiu imaginar?
Agora que sabe o que sentiria se fosse esta criança é bom que não se esqueça que neste Natal, em Portugal, há crianças em acolhimento residencial que estão a passar por isto mesmo. Pense nisso enquanto sossegadamente embrulha os presentes lá em casa, quando puder finalmente ver os seus entes queridos, quando a ceia estiver a ser servida, enquanto observar as crianças da sua família a brincar com as bonecas ou a jogar na consola que o pai Natal acabou de trazer... Tenha um feliz Natal.