O “lugar de fala” de Carmen Garcia: ciência vs. anti-intelectualismo populista
Reconheço a minha perplexidade com a “resposta” de Carmen Garcia a um artigo meu no PÚBLICO sobre a pandemia. Os critérios deontológicos desta publicação merecem uma reflexão, que nos convoca a todos sobre o que é hoje o debate público em Portugal.
Reconheço a minha perplexidade com a “resposta” a um artigo meu sobre a pandemia publicada no jornal PÚBLICO por Carmen Garcia. Os critérios deontológicos desta publicação merecem uma reflexão, que nos convoca a todos sobre o que é hoje o debate público em Portugal.
A autora começa por afirmar “apreço intelectual” por mim e discordar do meu artigo no PÚBLICO, ao qual, no entanto, quase não se refere. O seu artigo é sobretudo dedicado ao meu Facebook. Começa por comentar a minha página do Facebook e os seus seguidores, explicando-nos que são todos “negacionistas ou cansados da pandemia” e atribui-me afirmações que jamais fiz. O meu Facebook tem cerca de 90 mil seguidores, entre os quais muitos cientistas, jornalistas e intelectuais, associações e sindicatos, docentes, bem como dezenas de milhares de pessoas que não conheço. Faço questão de que seja aberto ao público com comentários livres, e a minha mediação é apenas para apagar comentários insultuosos. Lá aparecem milhares de opiniões com as quais concordo ou discordo.
Não posso devolver o elogio do apreço intelectual pela autora porque desconheço a sua produção intelectual e publicações sobre os temas que abordei no meu artigo. A senhora apresenta-se como blogger sobre o “quotidiano da maternidade” e enfermeira.
No meu trabalho estão duas décadas de estudos publicados sobre a sociedade portuguesa, a organização do trabalho e a proporcionalidade das medidas, o contraditório científico, os custos económico e sociais das medidas, a história das pandemias, o impacto no SNS e na sobremortalidade, os valores democráticos. A nada disto a senhora respondeu.
Na ausência de qualquer conhecimento demonstrado sobre a sociedade portuguesa, a articulista parte para o “lugar de fala”, um conceito em voga em certos meios pós-modernos. Não demonstra conhecer Portugal, nem as causas da situação estrutural e conjuntural em que nos encontramos, mas “já ventilou doentes”, explica-nos. Munida deste diploma, entrega-se a uma longa descrição teatral da morte, quase uma celebração no sentido figurado, que vale a pena citar: “Raquel Varela, que escreve, confortavelmente sentada à secretária, sem nunca ter visto um doente jovem em decúbito ventral, a passar por sucessivos recrutamentos alveolares, com gasimetrias cada vez piores até ao momento em que no monitor o traçado cardíaco é substituído por uma linha recta e uma equipa inteira tem de lidar com a frustração de ter perdido uma batalha.”
Desta descrição concluímos três coisas, todas elas muito sérias, desde logo para os profissionais de saúde. Em primeiro lugar, o anti-intelectualismo típico da era do populismo, em que a doutora “sentada à sua secretária” é confrontada pela técnica que “tem a mão na massa”. Os tempos pós-modernos têm sido férteis nesta ideia de que uma opinião avalizada em anos de estudos equivale a qualquer outra porque hoje o critério não é a razão crítica, mas a razão instrumental – importa a subjectividade de cada um (são os influencers), e não o saber acumulado. É também uma extensão do argumento do “lugar de fala”: quem está à chuva pode explicar melhor a meteorologia do que quem a estuda.
Em segundo lugar, ainda enquadrado neste elixir do “lugar de fala”, temos uma enfermeira que acha que por ser enfermeira conhece a pandemia e a pertinência das medidas adoptadas. Sobre isto direi rapidamente que uma pandemia é um fenómeno social e económico com alguma dimensão de saúde, já que o grosso do combate à pandemia se dá em áreas chave que não a saúde: demografia, organização urbana, estruturas e locais de trabalho e produção, transportes, abastecimento, trocas comerciais, relações familiares, etc. Ser profissional de saúde não equivale a uma certificação para saber lidar com a pandemia. Estar 24 horas numa UCI nesta altura merece, sem dúvida, todo o nosso respeito (e têm tido pouco, além de bilhetes de futebol e proibição de saírem do SNS), mas não creio que seja o melhor lugar para tomar decisões para dez milhões de habitantes. Trata-se do fim da linha de um problema que está a montante, a ser estudado sobretudo no campo da investigação, no “conforto” das secretárias. E em outras actividades que não envolvem contacto com doentes hospitalizados, mas que são indispensáveis para conhecer a doença e a sua disseminação.
Por último, mas tão ou mais importante. A um enfermeiro, e a qualquer profissional de saúde, cabe a responsabilidade de cuidar, tratar, acompanhar, transmitir segurança e confiança. É de enorme responsabilidade e por isso devem ter carreiras e salários dignos. Por isso é um sector que me merece profundo respeito. E o “lugar de fala” não permite a Carmen Garcia falar pelo seu sector. É que, creio, grande parte dos enfermeiros saberá que não lhes cabe fazer descrições atrozes da doença e daqueles pacientes que, infelizmente, não conseguiram salvar. Seria o mesmo que um tripulante de cabina, em pleno incidente aéreo, não tranquilizar os passageiros da aviação civil e, ao mesmo tempo, começar a narrar os horrores dos últimos minutos de uma catástrofe aeronáutica. O sentido do trabalho dos profissionais de saúde é cuidar dos outros, que não é só um ato técnico, exige um ethos público – a morte faz parte da vida, mas o sentido do trabalho é cuidar da vida: transmitir calma e segurança. Não é ceder ou ser o porta-estandarte de uma postura de medo (ainda que o possam sentir!), aderindo a uma retórica política que sufraga a estratégia governamental.
O artigo pergunta onde estão estudos que confirmem o que afirmo. Um artigo num jornal diário não pode citar uma molhada de artigos científicos, mas terei todo o gosto em dar à enfermeira Carmen Garcia todas as referências científicas que refiro, e também muito gosto em conhecer os estudos “robustos” em que a mesma diz apoiar-se para defender o confinamento e a supressão de direitos democráticos.
Finalmente, a articulista faz uma afirmação caluniosa que nunca proferi – que eu teria afirmado que a vacina altera o ADN – sem nunca citar onde e em que data terei dito ou escrito tal coisa, apenas que no “facebook”. No artigo do PÚBLICO refiro que deve ser realizado um debate em torno deste tema, nada mais. No Facebook referi, sempre entre aspas (foram colocadas por mim, e propositadamente), que existe a possibilidade de esta vacina “mexer” no genoma humano (existirá? Não só porque em biologia nunca sabemos tudo, mas porque essa possibilidade foi levantada por biólogos e médicos – que terei também gosto em citar com artigos referenciados). No meu Facebook referi então que esta tecnologia (RNA mensageiro) poderia dar origem a um campo de inovação imenso, e que já está em uso para o tratamento inovador do cancro, ao qual devemos estar abertos. A ciência pode e deve revolucionar antigos paradigmas e consensos. Mas a precipitação não se pode sobrepor ao método científico e ao conhecimento sólido transmitido ao público, desde logo se queremos uma campanha de vacinação com adesão das populações de todo o mundo. Não se pode fazer deste tema um assunto tabu, deve haver mais e não menos informação justamente para combater fake-news e criar confiança.
E, como se acaba de ver, combater a desinformação, que se escreve e partilha à velocidade da luz, hoje é central. O que mais temos são artigos que apostam no drama, na suspeição e na fulanização, e esse é justamente o seu plus que garante likes. Ao mesmo tempo o debate público é cada vez mais pobre, e menos elevado, porque os intelectuais não querem ver o seu nome envolvido neste ambiente de ausência de deontologia.
Nunca é demais rememorar as origens históricas. O “público” do título do jornal que tanto prezamos remonta à ideia-chave da esfera pública – nascida algures no início do século XVIII na Europa Ocidental –, espaço emergente de debate crítico e racional para além do Estado e do mercado. A crítica moderna nasce daí, de uma luta contra o Estado absolutista como um espaço discursivo autónomo em relação aos diversos poderes – económicos, sociais e políticos – estabelecidos. Tal como exposto na agora clássica teoria de Jürgen Habermas, A mudança estrutural na esfera pública, um circuito de instituições como as associações, os cafés, o mundo das letras e, sobretudo, o jornalismo, teriam nascido em desafio ao conformismo político da ordem dominante num tempo de conflitos e crises. Trata-se da mesma linhagem que deu lugar à noção moderna de intelectual público, para o qual o jornalismo já teve um papel preponderante.