Direitos (Des)Humanos na China
Esta violação dos direitos humanos por parte do Governo chinês não afeta apenas estas regiões do país com altos níveis de autonomia. Sob a liderança de Xi Jinping, Pequim tem vindo a reprimir e censurar fortemente quaisquer sectores da sociedade chinesa que se revelem ameaçadores.
Desde que assumiu a liderança da China em 2012, Xi Jinping tem dado prioridade à sua visão de “rejuvenescimento da nação chinesa”, associando-a ao que apelida de “sonho chinês” que mais não são do que três objetivos muito concretos: duplicar o PIB per capita entre 2010 e 2020, ter um exército “capaz de lutar e ganhar guerras” e responder às necessidades de bem-estar da sua população. Um “rejuvenescimento da nação chinesa” que deve ser visto em primeiro lugar como um sonho coletivo e só depois individual, tal como nos diz Elizabeth Economy no seu livro Third Revolution (2018). Só que o que temos assistido durante a liderança de Xi nos últimos oito anos é que esse suposto bem-estar a ser proporcionado pelo “sonho chinês” não pode ser partilhado por todos aqueles que fazem parte da “nação chinesa”.
No Noroeste da China, na região de Xinjiang, calcula-se que mais de um milhão de cidadãos chineses muçulmanos (na maioria Uigures) tenham sido presos em massa, de forma arbitrária e colocados em campos de detenção porque são vistos como uma potencial ameaça terrorista, extremista e separatista. A população muçulmana da região vive agora sob vigilância contínua e intrusiva, sujeita a uma política intensa de assimilação cultural e doutrinação política. No início, a existência destes campos foi negada por Pequim. Mas a denúncia pública e internacional com apresentação de provas como imagens dos campos construídos e em construção captadas por satélites e entrevistas com uigures no exterior da China, que ignoram o destino de membros das suas famílias que estão desaparecidos desde que foram levados para os campos, obrigou o Governo chinês a reconhecer a existência destes campos. A diferença é que apelida estes campos de centros de “formação profissional” ou de “transformação pela educação”. No Tibete, as autoridades chinesas continuam a reprimir a liberdade religiosa, de expressão, de movimento e de reunião sujeitando a população tibetana a uma vigilância intensiva das suas comunicações, online ou por telefone, como forma de combater qualquer iniciativa de oposição a Pequim ou de apoio ao Dalai Lama no exílio.
Em Hong Kong, os acontecimentos dos últimos meses não deixam margens para dúvidas sobre o tipo de “sonho chinês” que se quer para os cidadãos do território: desqualificação de quatro deputados pró-democracia acusados de serem uma ameaça à segurança nacional (a que se seguiu a renúncia, em solidariedade, dos seus mandatos na assembleia legislativa local pelos seus colegas pró-democracia) e condenação a penas de prisão de Agnes Chow, Joshua Wong e Ivan Lam, três jovens ativistas do movimento pró-democrata. A imposição da lei de segurança nacional em Hong Kong tem permitido ao Governo do território liderado por Carrie Lam (e apoiada por Pequim) perseguir e deter quem esteve envolvido de forma mais visível nos fortes protestos contra a sua administração em 2019.
Esta violação dos direitos humanos por parte do Governo chinês não afeta apenas estas regiões do país com altos níveis de autonomia. Sob a liderança de Xi Jinping, Pequim tem vindo a reprimir e censurar fortemente quaisquer sectores da sociedade chinesa que se revelem ameaçadores. Por isso tem vindo a fortalecer o controlo ideológico, particularmente no ensino universitário e na administração pública, a proibir práticas religiosas bem como a perseguir organizações religiosas que não tenham sido sancionadas pelo Governo, a investir em novas tecnologias para controlo social por um Estado cada vez mais policial e a coagir e prender advogados defensores dos direitos humanos. As atividades de organizações da sociedade civil chinesas tem vindo a ser cada ver mais dificultadas desde 2014 com a entrada em vigor de um conjunto de leis destinadas a fortalecer o seu controlo por parte do Governo. A CIVICUS, uma aliança global de organizações da sociedade civil, monitoriza regularmente o espaço cívico (ou três liberdades: expressão, associação e reunião) em 196 países e classifica-os em cinco categorias: aberto, reduzido, obstruído, reprimido e fechado. A última monitorização apresentada no passado dia 8 de dezembro classifica o espaço cívico chinês como sendo fechado, a pior categoria.
Em termos formais, a China tem subscrito tratados internacionais de defesa dos direitos humanos sob pressão externa. No entanto, continua a olhar para os direitos humanos como algo aspiracional e não em termos de proteção legal. Para a China, a prioridade deve ser dada aos direitos socioeconómicos, o direito ao desenvolvimento e continua a insistir que o quadro dos direitos humanos deve ser implementado de acordo com as condições nacionais de cada país. A China não se tem inibido de defender publicamente a sua visão de direitos humanos e até muito recentemente não parecia usar a sua máquina diplomática para moldar a arquitetura internacional de direitos humanos atualmente existente. No seio das instituições das Nações Unidas ligadas à protecção e monitorização dos direitos humanos à escala global, a China tem prosseguido uma agenda que a proteja de críticas por parte da ONU ou de outros países. Mas a atitude cada vez mais combativa e assertiva da sua diplomacia a que se assiste agora com a pandemia pode ser reveladora de uma nova postura no campo dos direitos humanos.
A China no século XXI será muito mais do que “apenas” uma grande potência económica. Usando as palavras de Bruxelas, já é também uma “rival sistémica” da União Europeia e a visão chinesa dos Direitos Humanos, nos moldes aqui enunciados, continuará a fazer parte da narrativa de Xi Jinping. No dia 6 de Outubro de 2020, o embaixador alemão nas Nações Unidas, Christoph Heusgen, submeteu à presidente Katalin Bogyay da Terceira Comissão da Assembleia Geral da ONU, normalmente conhecida como a Comissão de Assuntos Sociais, Humanitários e Culturais, uma declaração conjunta assinada por 39 países a expressar uma forte preocupação com a situação dos direitos humanos em Xinjiang e em Hong Kong. Portugal foi um dos Estados-membros da União Europeia que não subscreveu a carta, juntando-se à Hungria, Roménia, Chipre, Malta, Grécia e República Checa.
Luís Mah, CEsA-ISEG
Raquel Vaz-Pinto, IPRI-Nova
Maria Teresa Nogueira, Amnistia Internacional – Portugal
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico