A pandemia e a sombra de uma crise política… ou também de regime?
Entre números preocupantes de infetados, internados e mortos – a que se somarão, em breve, o exponencial aumento do desemprego e uma dificílima execução orçamental –, em que ponto vai tudo isto deixar a estabilidade do nosso sistema político-partidário, cuja ameaça de fratura ou fragmentação não deve ser desprezada?
Por maior que seja o esforço para adotar uma perspetiva otimista, tão necessária nestes tempos da nossa vida coletiva, o que se extrai dos recentes desenvolvimentos políticos é um conjunto de perplexidades que vêm ensombrar ainda mais o futuro e podem até agravar, perigosamente, o distanciamento entre eleitos e eleitores.
Bem se compreende, pois, o apelo feito pelo Presidente da República, na sua última declaração ao País, à convergência de esforços e à acalmia político-partidária. Mas não é seguro que esse apelo vá encontrar o desejado eco entre os partidos e atores políticos ou que, verdadeiramente, existam condições para essa convergência, como facilmente se infere da forma como decorreu a aprovação do Orçamento do Estado.
Aliás, uma convergência política artificial, que impeça a drenagem para a arena política das tensões sociais que se vão acumulando, também apresentaria riscos, podendo empobrecer o debate democrático e adensar um certo sentimento de não representação popular, o que favorece a dinâmica de movimentos de contestação inorgânicos e a expansão de correntes de pensamento de pendor mais radical ou extremista. E foram desses movimentos, à margem dos sistemas democráticos parlamentares, que se alimentaram, na sua génese, muitos regimes totalitários no século passado.
No que respeita à crise sanitária, a atuação governativa poderá prestar-se, pelo menos nalguma medida, às críticas provenientes dos mais diversos quadrantes, nomeadamente quanto ao tempo ou à demora na tomada de medidas de contenção, à coerência ou fundamentação factual e científica dessas medidas, às contradições do discurso político ou à ausência de uma estratégia de comunicação clara, sintética e incisiva. O próprio primeiro-ministro já reconheceu e assumiu até a responsabilidade por algumas dessas falhas.
Ainda assim, é difícil não reconhecer também alguma justificação ao lamento da líder parlamentar do Partido Socialista, quando afirmou que há muita gente que está agora a saltar do barco. É que o atraso na perceção ou na manifestação pública de preocupação pelo agravamento da pandemia em Portugal, que é matematicamente evidente pelo menos desde o final de setembro, e a não apresentação oportuna de propostas de medidas alternativas concretas – que é o cerne de qualquer oposição política construtiva –, parece perpassar todo o espectro político-partidário.
Nesta segunda vaga, a evolução da pandemia em Portugal não correu bem e é ainda motivo de enorme apreensão. E, assim sendo, fácil se torna apontar o dedo ao Governo, sem levar em conta a quota-parte de responsabilidade dos partidos da oposição, num cenário de crise nacional absolutamente dramático.
É neste conturbado pano de fundo que se insere o recente processo de aprovação do Orçamento do Estado, num exercício que parece descredibilizar tudo e todos, desde a gestão política do Governo aos excessos e intransigências dos diversos partidos da oposição.
De um lado, portanto, pode ficar a pairar uma perceção de negligência e de impreparação, ingenuidade ou inépcia. Mas, do outro lado, também pode ficar a suspeição de oportunismo, tacticismo político ou desconsideração dos interesses nacionais.
Entre números preocupantes de infetados, internados e mortos – a que se somarão, em breve, o exponencial aumento do desemprego e uma dificílima execução orçamental –, em que ponto vai tudo isto deixar a estabilidade do nosso sistema político-partidário, cuja ameaça de fratura ou fragmentação não deve ser desprezada? Como é bem sabido, a democracia não é um dado para sempre adquirido e exige atenção e cuidado constantes. Seria bom que, da esquerda à direita, todos os partidos de matriz genuinamente democrática tivessem isso presente. E que, como sói dizer-se entre nós, quem semeia ventos, colhe tempestades.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico