Lisboa, alojamento local e renda acessível: do wishful thinking à realidade
Não é possível pensar uma solução política que implica a adesão voluntária de um determinado grupo de pessoas – neste caso, os agentes do Alojamento Local que, como também percebemos deste inquérito, não são na sua maioria grandes especuladores do imobiliário, mas sim pequenos titulares – sem compreender as suas motivações e desmotivações para o fazer.
No dia 1 de Dezembro foi publicado um artigo no Guardian intitulado “Covid criou uma oportunidade: Lisboa transforma apartamentos turísticos em casas para arrendar” (tradução da autora). Lisboa e o seu presidente Fernando Medina são apresentados como mentores de uma política de habitação quase revolucionária que transforma um grande problema numa grande oportunidade. E, numa cidade pós boom turístico e subjugada à pandemia, o que é simultaneamente um problema e uma oportunidade? O Alojamento Local.
No fim de Março, o geógrafo Luís Mendes, num artigo no PÚBLICO, realça as potencialidades do Alojamento Local no contexto da pandemia como recurso essencial para o sucesso do Programa Renda Segura: um programa cujo objectivo é arrendar casas a proprietários privados para depois as subarrendar a preços acessíveis. Não fosse a realidade ser diferente do wishful thinking e a ideia seria genial. Face às enormes perdas que o Alojamento Local já sofria e viria a sofrer, esta era a solução ideal, um jogo de soma positiva em que todos sairiam a ganhar: os proprietários, que conseguiriam ter alguma compensação das suas perdas; a população, que teria o seu problema de acessibilidade habitacional atenuado; e o governo da cidade que, de uma assentada, estaria mais próximo de resolver dois problemas graves – o problema da habitação acessível para as classes médias e jovens que vinha de trás e o problema trazido pela pandemia, resultante do esvaziamento de muitos bairros da cidade na sequência da ausência de turistas.
Afinal, a pandemia parece terá tido aspectos positivos e, citando Medina nesse artigo: “temos a possibilidade de usar este tempo para pensar e ver como nos podemos reorientar no sentido de corrigir as coisas e colocá-las no caminho certo” (tradução da autora). É um facto que a competência governativa não é sinónimo de intransigência, mas sim de abertura à revisibilidade das políticas.
No final de Julho, um artigo publicado na Bloomberg assinado por Hayley Warren e Henrique Almeida dava já conta da resistência dos proprietários de Alojamento Local em aderir ao programa de renda segura. De acordo com os dados mais recentes, este programa terá angariado até ao presente 177 casas, 45 das quais provenientes do Alojamento Local.
Já no fim de Novembro, foram publicados os resultados do inquérito (DINÂMIA’CET – ISCTE) aos titulares/gestores de AL de todo o país, trabalho que coordenei. Uma das conclusões mais relevantes é que, apesar das enormes perdas de facturação, mais significativas em Lisboa, onde 93% refere perdas superiores a 75%, a maioria dos inquiridos deseja manter-se no AL de curta duração. A alternativa mais equacionada é o “arrendamento” de média duração, uma modalidade que, não excedendo um ano, não está sujeita à lei do arrendamento “normal”. Trata-se de uma solução destinada a múltiplos públicos-alvo, dos estudantes aos profissionais para quem o teletrabalho confere maior liberdade de escolha residencial, entre outros.
Estes dados, que foram recolhidos entre finais de Julho e princípios de Outubro e, portanto, antes das notícias da chegada das vacinas, estão já associados a uma expectativa optimista quanto ao horizonte temporal de normalização da situação: quase metade dos inquiridos considerava que essa normalização ocorreria ao longo de 2021. No presente e face às crescentes expectativas criadas em torno da cada vez mais real possibilidade de planos de vacinação implementáveis a curto prazo, não é crível que este optimismo venha a esmorecer. Pelo contrário.
Quanto ao arrendamento de longa duração, e referindo apenas a situação de Lisboa, o mercado privado, apesar de não figurar no topo das alternativas dos inquiridos, é uma hipótese bastante mais equacionada (17%) do que o “público” (5%): o arrendamento realizado por entidades públicas, designadamente a renda segura. Mas se estas conclusões são importantes e deveriam implicar uma reflexão sobre a viabilidade desta solução, compreender as suas razões é um passo importante para a tornar um pouco mais realizável, mesmo que num registo bastante menos ambicioso.
As razões evocadas por estes agentes para não aderirem ao arrendamento de longa duração são múltiplas e sobrepõem-se. Não se esgotam nas questões financeiras, ligadas à percepção de que o Alojamento Local é mais rentável, ou à falta de confiança no Estado para gerir os imóveis ou para garantir políticas fiscais e legislação de arrendamento mais consentâneas com as suas expectativas. Existem razões de ordem pessoal como o receio de ficar sem uma ocupação ou de perder o usufruto do imóvel. Razões ligadas às especificidades dos imóveis que, ou pela sua localização ou pelas suas características tipológicas e equipamento, não se adequam a essa solução. Estas apontam para uma situação que a própria Câmara de Lisboa criou e com a qual terá que lidar: o licenciamento considerável de casas pequenas destinadas ao AL que levaram à transformação e homogeneização do parque residencial de vastas áreas da cidade, comprometendo tanto uma instalação duradoura adequada às diversas fases do ciclo de vida familiar como a diversidade de habitantes que é a essência das cidades. Por último, o receio da perda de licença de AL ou o compromisso de longa duração que não permite mudança de planos são outras razões apontadas.
Não é possível pensar uma solução política que implica a adesão voluntária de um determinado grupo de pessoas – neste caso, os agentes do Alojamento Local que, como também percebemos deste inquérito, não são na sua maioria grandes especuladores do imobiliário, mas sim pequenos titulares – sem compreender as suas motivações e desmotivações para o fazer.