8. A deriva iliberal e autoritária
Há uma deriva iliberal no berço da democracia liberal e da modernidade. Mas essa deriva não pode ser explicada exclusivamente pela crise dos sistemas políticos.
Ao longo dos artigos anteriores tentámos identificar alguns dos grandes problemas com que se debatem as sociedades atuais. À incerteza estrutural e à dificuldade em lidar com a contingência associam-se processos de mudança social e cultural que levantam problemas para os quais não existem soluções pré-concebidas. A insegurança e a quebra da confiança dos cidadãos nas instituições acabam por ser uma consequência lógica, mas reconheça-se que elas se refletem de maneira mais preocupante nas instituições políticas.
Os sistemas políticos estão minados pela fragmentação das escolhas partidárias, pela afirmação das ideologias de nicho, pela radicalização dos movimentos sociais e pelo extremismo das reações. Os Estados, mais do que um problema de escala, enfrentam uma crise de autoridade pública e uma progressiva disfuncionalização.
Estes são os ingredientes para uma tempestade perfeita, ou seja, uma crise estrutural dos sistemas políticos, especialmente os identificados com o modelo de democracia liberal.
Entretanto, desde, pelo menos, a primeira década do nosso século que um crescente número de países se tem afastado do modelo ocidental, recorrendo a soluções autoritárias ou, no conceito de Fareed Zakaria, a modelos de “democracia iliberal”.
Recentemente, foi no coração do mundo ocidental que os primeiros ensaios de democracia iliberal se concretizaram. E se o populismo de Berlusconi foi, de algum modo, contido na Itália, nem por isso as ameaças iliberais e extremistas deixaram de existir naquele país. No Reino Unido, o movimento do “Brexit" teve o seu sustento em forças políticas e movimentos sociais radicais e nacionalistas. Nos Estados Unidos, um populista e demagogo esteve um mandato na presidência e deixou uma marca antiliberal que tão cedo não irá desaparecer. Em quase todos os países membros da UE, o radicalismo, mais conservador ou mais progressista, tem vindo a ganhar terreno, mas a concretização do acesso ao poder tornou-se evidente nos casos da Hungria e da Polónia.
Há uma deriva iliberal no berço da democracia liberal e da modernidade. Mas essa deriva não pode ser explicada exclusivamente pela crise dos sistemas políticos. Ela é mais consequência dos ingredientes que enunciámos acima, das mudanças profundas que se operaram à escala global e, bem mais importante, do mito ocidental da superioridade e universalidade do modelo de democracia liberal.
Não se pode enaltecer os benefícios da globalização e ignorar os milhões de deserdados do progresso que diariamente “batem à porta” dos países mais desenvolvidos. Não se pode defender a liberdade de circulação e o livre comércio e esquecer os que não conseguiram preservar os seus rendimentos e estatuto social, os que não se adaptaram às novas regras de um mercado sem fronteiras. O que esperavam? Que morressem calados? Que apagassem o medo que lhes embaraça a existência?
Por mais que eu condene os protecionismos e os nacionalismos, nomeadamente os xenófobos, não desisto de tentar perceber e de explicar de forma racional as causas por que se refugiam nessas soluções.
Os países do leste europeu assistem a uma tensão permanente e cada vez mais radicalizada entre os modelos das democracias liberais dos seus parceiros do ocidente e as soluções iliberais e autoritárias dos seus vizinhos, Russos, Bielorrussos e Turcos. Têm em comum uma longa história de integração em impérios territoriais, uma modernidade construída de cima para baixo em sociedades tradicionalmente campesinas, identidades nacionais forjadas sobre os mitos de origem e pelo ressentimento da dominação exterior. Mais importante que a dominação soviética que não chegou a meio século, é o especial padrão de industrialização e de modernidade tardia e confinada que nos pode esclarecer esta particularidade distintiva em relação aos Estados-nação do ocidente.
Como se poderão compatibilizar sistemas políticos liberais com sociedades social e culturalmente iliberais?
O modelo de democracia liberal é um produto das sociedades ocidentais que mergulha as suas raízes filosóficas nos contributos de John Locke, Montesquieu e do iluminismo e nos legados constitucionais das Revoluções Americana e Francesa. O princípio republicano da soberania popular, a constitucionalização dos direitos fundamentais do cidadão, o supremo valor da liberdade individual e a ética da responsabilidade cívica, são os adquiridos fundamentais desse legado histórico. Mas o que lhe conferiu o carácter inovador – e, de certa forma, revolucionário – foi a sua dimensão universal. Ou seja, o que há de intrinsecamente novo é a afirmação da sua supremacia face a outros sistemas de valores que, mais tarde ou mais cedo, seriam convertidos aos princípios democráticos e liberais.
O desafio iliberal e autoritário explora as fragilidades desses princípios e conceções em contextos sociais e culturais periféricos, enaltecendo a expressão da “vontade” popular e exacerbando a dimensão emocional das suas reações. Adapta-se taticamente ao constitucionalismo, mas sempre vai lembrando que “há outras formas de democracia” para além da “democracia burguesa”. Elabora novas ou reconstruídas identidades coletivas – uma nação reinventada – como forma de legitimar a limitação da liberdade individual. Dramatiza a ameaça dos imigrantes e refugiados como forma de preservar uma identidade étnica e religiosa face à “amálgama” cosmopolita. Condena o desvio moral, raramente assumindo que eles próprios são desviantes.
O sucesso ou insucesso dos modelos de organização política depende do bem-estar, confiança e das oportunidades que proporcionam aos cidadãos. Se as instituições não promovem essa confiança e frustram as expectativas de mobilidade social, a democracia liberal tem os dias contados.
No sistema político, é urgente recuperar a dignidade e autoridade dos eleitos, mas, se os partidos não escrutinam com rigor e transparência o seu recrutamento, dificilmente ganham a confiança dos eleitores. Se os governos se transformam em meras máquinas de poder e de distribuição desigual de cargos e bens públicos sem resolver de forma eficaz os problemas dos cidadãos, só geram revolta. Se há uma justiça que trata de forma desigual o cidadão comum e os membros corruptos das elites, alimenta a corrupção. Se o Estado se revela forte com os mais fracos e fraco com os mais fortes, como pode a sua autoridade ser respeitada?
Se a democracia liberal não for capaz de se reformar perde a sua autoridade moral perante os modelos iliberais e autoritários.
Oitavo de uma série de dez textos de David Justino que publicaremos semanalmente, sempre às quintas-feiras, sobre os desafios que enfrentamos em várias áreas, em Portugal e no Mundo. Próximo artigo: “A via do capitalismo autoritário”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico