“É preciso gostar de palavras”: o rosto que se esconde por detrás das palavras cruzadas do PÚBLICO
Fez 30 anos de cruciverbalista quando o próprio PÚBLICO fez 30 anos e o seu trabalho é familiar a quem folheia com atenção as últimas páginas do jornal (e mais recentemente também a quem passa os olhos pelo online). Para Paulo Freixinho, fazer palavras-cruzadas “é como respirar”.
“É preciso gostar de palavras”, diz com uma voz que não lhe deixa esconder o orgulho de quem gosta do que faz. Paulo Freixinho é o criador das palavras cruzadas do PÚBLICO desde 1999. O seu caminho anda de mão dada com as palavras desde cedo, marcado por um início fora do esperado. “Eu lanço já a bomba: fui mau aluno a português. Percebi que as palavras cruzadas ajudavam, então, quando era novo, entretinha-me a fazer as palavras cruzadas das revistas”, explica.
Passou pelo desenho gráfico e teve o primeiro contacto com os passatempos num ateliê onde trabalhava, que também dava casa a uma revista sobre cinema. “Surgiu a oportunidade de recriar a primeira página de passatempos, com palavras cruzadas, humor, diferenças, e era eu que fazia.” O “bichinho” cresceu até ao lançamento da revista Jogos Cruzados. “Através da revista fui ter à Agência Feriaque. Ficou profissão.”
Profissão esta que diz ser “inventada, ou melhor, forçada”. “Costumo dizer, principalmente quando vou às escolas, que serei provavelmente o último cruciverbalista profissional. Isto, porque os computadores já fazem as palavras cruzadas, já não é preciso uma pessoa.” Ainda assim, Paulo Freixinho acredita que “há uma mais-valia de ser uma pessoa a fazê-las, porque há uma vivência. Duvido que alguém tenha esta profissão depois de mim.”
"Que tipo de palavras os escritores andam a utilizar"
Com os tempos, também a função do cruciverbalista foi mudando, assim como as temáticas dos próprios passatempos. Paulo Freixinho recorda que, “antigamente, as palavras cruzadas do PÚBLICO tinham como base um provérbio ou um título de um livro ou de um filme. Agora, são baseadas em notícias.” Este novo factor, que traz a actualidade ao próprio passatempo, acabou por alterar também o dia-a-dia do autor. “Antes, enviava oito grelhas semanais. Agora faço de duas em duas, por causa das notícias, que de um dia para o outro mudam. Isso está a ser um desafio muito grande para mim”, confessa.
A sua maior preocupação diz ser a escolha do vocabulário, que se quer rico e diversificado, porque “o que diferencia as palavras cruzadas de um passatempo é o vocabulário”. “As primeiras palavras vão parar à grelha e depois é cruzar. Mas eu tento sempre meter uma ‘cereja’, uma palavra que a pessoa possa aprender. Se isso acontecer, já valeu a pena ter estado aqueles minutos agarrado às palavras cruzadas. Preocupo-me sempre que isso aconteça”.
Na altura de pesar a importância das palavras que escolhia, Paulo Freixinho recorda um episódio de uma crítica que recebeu dizendo que as palavras que utilizava “não interessavam a ninguém” – e Paulo “não queria que as pessoas pensassem isso das palavras cruzadas”. A solução foi começar a ler, e muito, literatura portuguesa, “para tentar perceber que tipo de palavras os escritores andavam a utilizar”. “Uma das palavras que encontrei, por exemplo, em A Viagem do Elefante, do Saramago, foi ‘cornaca’, que é o adestrador dos elefantes e é uma das palavras que eu usava mais nas palavras cruzadas do PÚBLICO. Diziam que estas palavras eram desinteressantes, mas, se Saramago utilizou essa palavra, está aprovada!”
Interessar as crianças pelas palavras
Com a “aprovação” de José Saramago, a escolha foi-se tornando mais clara, assim como a estratégia, que passa por ter “uma base de palavras” que vai anotando durante a leitura. Depois disto, e de uma longa pesquisa prévia pelas notícias, é uma “laboração morosa” de preencher a grelha e cruzar as palavras: “Uma hora e meia e temos umas palavras cruzadas para o PÚBLICO.” Depois disto, vem a altura de rever.
O cruciverbalismo é uma profissão constante, que faz Paulo trabalhar desde que acorda até à hora de ir deitar: “Para já, porque trabalho em casa, já muito antes da pandemia. E depois estou sempre a ler, tenho também um site que vou actualizando, assim como as redes sociais. No PÚBLICO online, como sou eu que as coloco, as palavras são publicadas à meia-noite, não gosto de as fazer com antecedência porque gosto que seja no momento. É de manhã à noite, é como respirar.”
No seu público-alvo, para além dos já adeptos de palavras cruzadas, conta com crianças, que vêem o passatempo como um “desafio”. “Quando vou às escolas, levo palavras difíceis porque eles adoram aprender esse tipo de palavras. Eu dou sempre o exemplo do amplexo (o abraço) e do ósculo (o beijo). E já me aconteceu ver os miúdos nos intervalos a brincar aos amplexos e aos ósculos. Andavam todos atrás uns dos outros, “Dá-me um amplexo!”, ou “Dá-me um ósculo!”.
Aficionado da leitura, como não podia deixar de ser, não hesita no que recomendar aos leitores do PÚBLICO: Afonso Cruz. A razão não podia ser outra que não o vocabulário. “Uma vez, a minha filha leu o livro Os Livros que Devoraram o Meu Pai, quando tinha 8 anos, e chegou ao pé de mim e perguntou ‘Oh pai, tu sabes o que é um anagnosta?’. Eu não sabia. Um anagnosta é uma pessoa que lê para outras pessoas. Quando vi que havia um escritor que tinha essa palavra num livro para crianças, fiquei muito atento à obra dele.”
As palavras cruzadas do PÚBLICO chegam ainda a autores portugueses, como António Mota ou Alice Vieira, fãs deste passatempo. Para Paulo Freixinho, “o segredo é paciência”. O passo seguinte é o resumo de tudo: “É preciso gostar de palavras.”