Soraia Chaves: “Há alguma coisa de errado na nossa sociedade se não aceitamos a liberdade do outro”

A actriz é protagonista na série A Generala no papel de Maria Teresinha, a mulher que há quase 30 anos espelhou o preconceito português sobre a identidade de género.

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Nuno Ferreira Santos

Das passerelles para o grande ecrã, a primeira experiência de Soraia Chaves enquanto actriz deu-se logo com o segundo filme português mais visto em Portugal, segundo o Instituto do Cinema e do Audiovisual. Mais de 380 mil pessoas foram aos cinemas ver O Crime do Padre Amaro (2005), um filme que celebrou 15 anos em Outubro. Juntamente veio o “preconceito" com a sensualidade, refere a actriz ao PÚBLICO. Num “país muito conservador”, o “rótulo” foi cimentado dois anos depois com Call Girl (2007).

Ao longo da carreia, o estigma que lhe foi associado “passou para segundo plano”, mas Soraia Chaves não deixa de sublinhar que ainda existe uma “mentalidade que não respeita as mulheres e a sua liberdade”. O mais recente papel colocou-a no corpo de uma mulher que queria ser homem. A actriz é a protagonista na série A Generala, que estreia a 24 de Novembro na plataforma Opto, da SIC, e que vai buscar a história real de Maria Teresinha que em 1993 intrigou o país quando se sentou no banco dos réus. Durante 17 anos, Maria Teresinha foi o general do exército Tito da Paixão Gomes sem que ninguém soubesse — nem a companheira com quem viveu durante década e meia — período em que cometeu várias burlas.

Para Soraia Chaves foi “chocante” perceber “a humilhação pública” a que Maria Teresinha foi sujeita “apenas porque se sentia homem”, mais do que por ter cometido fraudes. Embora considere que se tenha evoluído na forma como se abordam as questões de identidade de género desde então, também sente que “ainda há muito pouco humanismo na nossa sociedade”.

Entrou no mundo da moda quando tinha apenas 15 anos. A transição para o mundo da representação deu-se logo através do grande ecrã. Foi um “salto” natural?
Eu comecei muito cedo. Profissionalmente, a vida levou-me primeiro a percorrer o mundo da moda, também por uma questão de independência financeira. Explorei esse mundo até que quando essa vontade de experimentar a representação se tornou possível, percebi que era o momento de fazer a transição e apostar a 100% naquilo que eu sempre quis.

Na altura sentiu que a consideravam apenas “uma cara bonita?
Sim, claro que sim.

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"Se uma mulher andar de roupas curtas, se mostrar a sua pele na rua, não está a pedir para ser objectificada e usada como se nada fosse. Há uma zona de respeito que é ultrapassada por uma mentalidade que não respeita as mulheres e a sua liberdade" Nuno Ferreira Santos

Como é que lidou com isso?
Não foi fácil, naturalmente. Existe muito estigma e muito preconceito à volta de todo o mundo da moda e contra quem ingressa no mundo da representação sem ter formação. No meu caso, comecei imediatamente com um filme que esteve nas salas de cinema e que foi um enorme sucesso. Houve uma enorme explosão a nível de visibilidade na minha primeira experiência. E havendo também uma enorme exposição física, senti, sem dúvida, muito esse estigma da desvalorização da minha prestação. Eu era muito jovem e não foi fácil lidar com isso. Demorei alguns anos a saber lidar com essa questão. Mas também apostei na minha formação e fui fazendo o trajecto com calma. Não tive muita pressa. As coisas foram-se compondo devagar e fui ganhando respeito dos meus pares. Demorou algum tempo, mas eventualmente esse estigma desapareceu e o preconceito passou para segundo plano.

Essa sua estreia, O Crime do Padre Amaro, faz este ano 15 anos. Dois anos depois entrou em Call Girl. O público reagiria hoje a esses filmes da mesma forma que reagiu na altura?
Acho que não. Acho que nós já mudámos muito. Na altura, surpreendeu-me muito a reacção das pessoas à questão da exploração a nível cinematográfico da sensualidade, da sexualidade e do meu à-vontade a interpretar esses papéis e assumir esse carácter sensual. Para mim sempre foi uma coisa muito natural, portanto não esperava tanto alarido à volta de uma coisa que faz parte da nossa natureza e que nunca me chocou. Percebi que vivíamos num país muito conservador. Quando sofri desse preconceito, desse rótulo, não tinha a ver tanto com a beleza, mas com o facto de me sentir confortável para interpretar papéis de exposição física. Como se a sexualidade não fizesse parte da nossa natureza e fosse algo que deveria ser mantido em segredo. Hoje em dia vê-se que as pessoas já estão mais abertas, já percebem a importância de, enquanto indivíduos, termos esse espaço de expressão e essa liberdade. A sexualidade faz parte de nós, é uma parte fundamental e vital das nossas vidas.

Se esse preconceito existe por parte do público, também existe no mundo da representação?
O que existe — e que mais me perturbou na altura e continua a perturbar —, é a questão dessa liberdade, para algumas pessoas, significar objectificação. Acham que nós nos estamos a objectificar se falarmos ou emprestarmos o nosso corpo, a nossa imagem e a nossa liberdade para falar sobre sexualidade. Isso, obviamente, não significa uma objectificação, mas a percepção das pessoas é essa. Nesta indústria, como vimos recentemente com todos estes movimentos contra casos de abuso, é uma coisa que acontece muito com as mulheres. Se uma mulher andar de roupas curtas, se mostrar a sua pele na rua, não está a pedir para ser objectificada e usada como se nada fosse. Há uma zona de respeito que é ultrapassada por uma mentalidade que não respeita as mulheres e a sua liberdade.

A personagem que interpreta em A Generala, Maria Teresinha, foi uma mulher que disse em tribunal que só se sentia bem enquanto era vista como um homem e que só assim é que era respeitada. Enquanto mulher confiante de si mesma, foi um desafio interpretar alguém que se identificava com outro género?
Fui buscar o meu lado humano. Essas são questões humanas, independentemente do nosso género ou da nossa genitália. São pessoas que têm a sua identidade e querem defendê-la. No caso da Maria Teresinha, trata-se de uma mulher que desde cedo não se sentia confortável com a sua condição de mulher. Ela foi privada de viver como gostaria de viver e acho que isso também acontece com as mulheres em vários sentidos.

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"O sector da cultura claramente está bastante ameaçado. Assim como outros. Não somos os únicos" Nuno Ferreira Santos

Eu — enquanto mulher — também já senti o preconceito da mesma forma que a Maria Teresinha, por se vestir como homem ou se identificar com a identidade masculina, foi menosprezada, estigmatizada e marginalizada. Acho que nós temos muitos pontos em comum na luta pelos direitos de igualdade e de liberdade.

Em termos de construção física e psicológica, obviamente houve muito trabalho de pesquisa, sobretudo através de histórias reais. Felizmente temos acesso a reportagens, documentários e livros sobre um tema que está bastante documentado. E tive oportunidade de ver coisas extraordinárias. Depoimentos reais de pessoas que passaram por isso. Houve alguns exemplos muito tristes porque acabam por não ser bem-sucedidos. Os que são bem-sucedidos, são de uma enorme e fortíssima inspiração. Há uma enorme luta destas pessoas só para serem quem são. São condenadas pela sociedade por serem diferentes.

O caso tem cerca de 30 anos. Evoluímos neste sentido desde então?
Na altura era pior, mas hoje em dia continua a existir esse preconceito. Ainda hoje, se uma adolescente não se sentir confortável e quiser fazer transição de sexo, continua a ter dificuldades no seu dia-a-dia. Continuam a existir muitos obstáculos para estas pessoas porque ainda há muito pouco humanismo na nossa sociedade.

Se o caso da Maria Teresinha se passasse hoje, o foco do público estaria mais no crime do que nas questões de género? Porque foi exactamente o contrário que se passou na altura...
Esse é um ponto muito interessante. Uma das coisas que mais me surpreendeu quando descobri este caso, foi que quando ela vai a tribunal — e ela é acusada de pequenos crimes — de facto, o que foi discutido e o que aconteceu foi um enorme circo e uma humilhação pública por ser uma mulher vestida de homem e não por ser uma pessoa que cometia crime de fraude. Como é que isso choca mais? Como é que a liberdade de uma pessoa é mais chocante do que um crime? O que foi explorado foi a sua identidade e a forma como ela se vestia. Foi a forma de ser de uma mulher que se sentia homem.

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"Com esta questão da pandemia ficou muito clara a importância que teve a cultura para as pessoas manterem a sua sanidade e a sua vitalidade" Nuno Ferreira Santos

Quase como se o crime fosse a questão da identidade...
... E não a burla. Há aqui um problema claro que tem a ver com a incapacidade das pessoas em aceitarem a diferença. Foi mesmo chocante para mim descobrir o que aconteceu a esta mulher em tribunal e também através dos media. A humilhação pública a que ela foi sujeita apenas porque se sentia homem. Isso deu-me muita força para interpretar este papel com orgulho.

Uma força que também pode tirar quem vir a série?
Espero que sim. Espero pelo menos que faça alguém reflectir. Nós retratamos na série um ponto de vista muito humano, retratamos a vida inteira desta mulher, desde a infância até à sua morte. É todo o trajecto de sobrevivência. Primeiro de opressão, depois de fuga, de busca da liberdade e depois a sobrevivência até à morte que acaba por surgir devido a essa incapacidade, a esse obstáculo que ela não consegue superar que é o de ser livre e respeitada pela sociedade.

O interesse e o preconceito que se viu na altura foi adensado pelo facto de Maria Teresinha se ter feito passar por um general, por uma figura militar com autoridade?
É um pormenor fascinante. Ela não só quer usar a identidade de um homem como tem de ser de um general, ou seja, de uma posição que representa o poder. Teríamos de tê-la viva para conseguirmos perceber o que a levou a querer fazer isso. De facto, é uma constante luta pelo respeito. A dignidade destas pessoas está constantemente a ser posta em causa. Pelo menos a história que se está a contar é essa. Ela teve de encontrar um disfarce para se sentir bem, teve de chegar ao ponto de se disfarçar e de enganar as pessoas à sua volta para ser aceite. Por outro lado, ela conseguiu encontrar o amor e teve uma companheira com quem viveu durante 15 anos, mas às escondidas. É importante esta história ser contada. Retrata uma parte da sociedade que continua a ser marginalizada. É preciso reconhecer que há alguma coisa de errado na nossa sociedade se não aceitamos a liberdade do outro quando essa liberdade não está a prejudicar ninguém.

Da história para as gravações, é desafiante trabalhar num set durante uma pandemia?
Estamos todos neste impasse de: como é que podemos continuar a fazer o nosso trabalho? Os números continuam a aumentar e é mesmo muito estranho trabalhar assim. Mas, felizmente, ainda conseguimos continuar a produzir no audiovisual. Esta é uma fase alucinante, parece quase ficção científica. E é de uma enorme incerteza que traz muita angústia. O sector da cultura claramente está bastante ameaçado. Assim como outros. Não somos os únicos.

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"Há uma enorme luta destas pessoas só para serem quem são. São condenadas pela sociedade por serem diferentes" Nuno Ferreira Santos

A Generala vai estrear na Opto, da SIC. Como é que vê essa transição para as plataformas de streaming?
É a evolução natural das coisas, quem ditou isso de certa forma foi o público. As pessoas aderiram com enorme naturalidade e força. O nosso futuro passa também pelo investimento nessas plataformas para não deixarmos de contar histórias. E para os portugueses também verem histórias em português, com actores portugueses e sobre a nossa cultura e realidade.

O importante é contar histórias.
O importante é fundamentalmente isso. Nós sem a cultura empobrecemos. Com esta questão da pandemia ficou muito clara a importância que teve a cultura para as pessoas manterem a sua sanidade e a sua vitalidade. As pessoas consumiram imensa cultura em casa. Sem a cultura, as pessoas teriam enlouquecido. Quer dizer, muitas enlouqueceram na mesma (risos).

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