Uma das iniciativas integrantes do programa de comemorações do centenário de Bernardo Santareno era a realização de um mural, na rotunda Madre Andaluz, em Santarém, pelo artista plástico João Domingos, aka BIGOD, no âmbito do Pictorin – III Encontro Internacional de Artistas Plásticos, conforme o PÚBLICO noticiou a 1 de Setembro. Todavia, a Câmara Municipal de Santarém (CMS) não autorizou a concretização no local previsto, por entender que a proposta do artista plástico não era “a imagem que se pretendia para colocar” naquele muro. Segundo palavras da vice-presidente e vereadora da Cultura da CMS, em reportagem do Correio do Ribatejo TV, o município “não gostou muito da proposta”.
Esta situação foi muito criticada por vários agentes culturais locais, sobretudo porque a decisão foi tomada no dia anterior e por se ter conotado a não autorização com motivações políticas de autarcas eleitos/as pelo PPD/PSD, que não teriam gostado da frase de Bernardo Santareno que acompanhava o mural: “Lutem para que o fascismo não torne a acontecer neste país”.
O mural acabou por ser realizado dentro das instalações do Instituto Politécnico de Santarém, mediante célere autorização da directora da Escola Superior de Educação e do presidente do instituto que, em menos de 24 horas, permitiram a realização do mural, num edifício com dimensões à medida dos moldes (stencil) que já haviam sido cortados no Fablab da ESE-IPSantarém.
Cerca de 15 dias mais tarde, o muro no qual estava previsto realizar o mural apareceu vandalizado com uma frase grafitada “Lutem para que o fascismo não torne a acontecer neste país”, com “assinatura” de Santareno. Este acto ilícito foi visto, na cidade, ora como atentado ao património municipal, ora como reacção à “censura” de que haveria sido alvo a voz de Santareno e o mural de João Domingos.
Entretanto, a polémica ganhou maior dimensão quando o presidente da Câmara, Ricardo Gonçalves, publicou, na sua página pessoal do Facebook, uma fotografia manipulada da frase ilicitamente grafitada, em que se tinha apagado a “assinatura” de Santareno e adulterado o sentido, acrescentando o termo comunismo: “Lutem para que o fascismo e o comunismo não torne a acontecer neste país”. Uns dias depois, o município mandou limpar a frase original e pintar a parede de branco.
É toda esta situação que está retratada nos artigos de Samuel Pimenta, escritor, e Inês Barroso, vice-presidente e vereadora da Cultura da CMS, publicados pelo P3 a 11 de Outubro.
Samuel Pimenta tem razão ao afirmar que a partilha pública, pelo presidente, da foto manipulada “desonra a memória do scalabitano Bernardo Santareno”, porque da foto original se apagou o nome de Santareno e porque toda a sua obra vale pela sua grande qualidade literária, pelo seu humanismo, mas também pela sua dimensão de intervenção social e política contra o fascismo, não fazendo qualquer sentido associá-lo à luta contra o comunismo. Na sua obra Mares do Fim do Mundo até os peixes encarnados são comunistas. Alguns dos comentários ao post do Presidente acusaram-no precisamente de desinformação (“Estudar um pouco de História seria aconselhável, para não se escreverem disparates!”). Samuel Pimenta vai mais longe, escrevendo que a partilha pública da foto manipulada “desonra (…) a herança dos Capitães de Abril”. Um dos primeiros comentários à atitude do presidente foi precisamente um “Está lindo está... Volta Salgueiro Maia!! !!”
Em defesa do município, a vice-presidente Inês Barroso escreveu um texto, com a posição contrária, que intitulou “Bernardo Santareno continuará a ser homenageado por e para Santarém”, que não retrata exactamente o que se passou e, por isso, importa repor a verdade dos factos. Afirma que o Grupo Coordenador das Comemorações foi constituído por “iniciativa do município e também da sociedade civil”. A iniciativa não partiu da Câmara, mas da Associação das Comemorações Populares do 25 de Abril de Santarém, que, em Novembro de 2019, decidiu juntar associações culturais, artistas e outras entidades culturais, numa reunião que se realizou no Fórum Actor Mário Viegas. Nesta reunião, escolheram-se cinco entidades responsáveis por realizar contactos com mais entidades locais e agendar uma reunião com a Câmara para se articular esforços com o objectivo de prestigiar e dar a conhecer Santareno. A autarquia integrou o Grupo só em Dezembro.
Sublinha Inês Barroso que “o presidente da Câmara, Ricardo Gonçalves, integra a lista de honra deste grupo nacional”, referindo-se à Comissão de Honra das Comemorações, mas a ausência dele na conferência de imprensa promovida pela Câmara não honrou essa “lista”, como não honrou a sua ausência nas várias iniciativas das comemorações em Santarém até à data.
Afirma que a CMS autorizou o mural e pediu “um draft” a 20 de Agosto e que a proposta só a 30 foi enviada, dando a parecer que a responsabilidade foi do artista e omitindo que, em Maio, quis adiar uma reunião do Grupo em vez de aceitar reunir a distância, faltando à reunião no Zoom. Depois, levou mais dois meses a responder ao pedido de autorização. Ou seja, levou meses a autorizar o uso de um muro e depois esperava que o artista, que estava de férias, produzisse “um draft” da pintura em menos de dez dias. E, como depois “não gostou muito” do draft, queria outras propostas em dois dias.
Diz que não existiu qualquer conotação política na recusa do mural por parte da Câmara, mas o horror do presidente ao comunismo veio provar o contrário.