Gene Tierney, a nossa eterna Laura, essa actriz graciosa, exótica e etérea, uma das favoritas de Martin Scorsese, faria hoje 100 anos. Diria, com quase total certeza, que é precisamente o noir Laura (Otto Preminger, 1944) que assegura o seu lugar na história do cinema, não fosse ele um inquestionável clássico, bem como o seu filme mais conhecido. Dotada de uma óbvia, mas requintada, beleza, Gene deslumbra com o rosto em forma de coração (como João Bénard da Costa tão bem o definiu), olhos claros e um caloroso sorriso revelador dos seus dentinhos tortos. Aliado ao rosto (e aproveito para dizer que Gene tem, muito provavelmente, junto à também morena Ava Gardner, o perfil mais belo da velha Hollywood), está a sua presença elegante patenteada nos seus filmes mais representativos. O colega Richard Widmark disse que ela “era uma precursora de Grace Kelly”. É verdade que ambas são muito sofisticadas. Não obstante, detecto um aconchego na Gene que não vejo tão nítido na postura mais gélida da princesa do Mónaco.
Começando a carreira de actriz de forma promissora na Broadway, depressa a nova-iorquina Gene passaria a formar parte do grupo de estrelas da Twentieth Century Fox, sendo a sua mais bonita integrante. De facto, o magnata da Fox, Darryl F. Zanuck, julgava-a a estrela mais bela do cinema (e, provavelmente, ele pensou isto conhecendo a Rita Hayworth e a Lana Turner!). Mas Gene não é só beleza: ainda que eu esteja em crer que o seu debut em O Regresso de Frank James (1940) não pareça ter sido promissor (pois a revista Harvard Lampoon a rotulou como “pior revelação feminina de 1940”), Gene é uma muito boa e versátil actriz e teve a sorte de trabalhar com alguns grandes realizadores, como Fritz Lang e John Ford. Com Amar foi a Minha Perdição (1945), Gene chegou mesmo a receber uma nomeação para o Óscar de Melhor Actriz. Neste noir mórbido embrulhado em alegre technicolor, a talentosa jovem dá vida a uma mulher patologicamente ciumenta.
Há algo de fantasmal e etéreo em três dos seus filmes mais associados — Laura, Amar foi a minha Perdição e O Fantasma Apaixonado (1947): no que respeita a Laura, não poderei aqui fazer spoiler; em Perdição é sinistra com a sua mirada azul gélida (há quem diga que é verde); e em O Fantasma é uma senhora viúva pela qual um fantasma se enamora.
Apesar do sucesso profissional, Gene tornou-se mentalmente muito doente durante parte da década de 50 (passou por três hospitais psiquiátricos). O facto de a actriz ter sido publicamente transparente sobre a sua doença é admirável, corajoso e importante, pois ajudou a que se compreendesse melhor a doença mental.
Gene, que veste azul em quase todos os filmes a cores, fascina com o seu charme quer contracene com o “One-Take [Henry] Fonda”, com o galã Tyronne Power ou com o discreto Dana Andrews. Acredito que a sua prolífera carreira dos anos 40, com bons títulos como O Céu Pode Esperar (1943) e O Fio da Navalha (1946), o filme onde a vi mais bonita, fá-la-á ser recordada por muitos e bons anos por parte dos cinéfilos mais nostálgicos. É estimulante ouvir a fanfarra da Twentieth Century Fox e saber que se vai assistir a um filme seu. E que este a congele no tempo, qual retrato de Laura.