6. A Sociedade do Conhecimento
O futuro dificilmente estará do lado dos que não possuem um elevado nível de qualificações. Mas também não estará do lado dos que apenas detêm informação.
Yuval Noah Harari, o historiador israelita autor de Sapiens, publicou há pouco mais de um ano 21 Lessons for the 21st Century (21 Lições para o Século 21), em que desenvolve um conjunto de ideias que têm tanto de irreverência e provocação quanto de inquietude e especulação. Apesar do abuso do método ensaístico, Harari tem algumas análises estimulantes.
Por exemplo, no capítulo 3, “Liberty. Big Data is watching you”, o autor coloca o problema da liberdade em confronto com a capacidade de acumular dados pessoais e de os processar com o objetivo de condicionar e influenciar a decisão dos cidadãos. O risco identificado é o da emergência das “ditaduras digitais” ao bom estilo “orwelliano”. No capítulo seguinte, “Equality. Those who own the data own the future”, problematiza sobre o poder das grandes empresas e dos governos que lhes advém da posse das grandes bases de dados. Quem detém a informação detém o poder.
Permitam-me que discorde. O foco de Harari está nas bases de dados, nos supercomputadores e na informação. Eu defendo que o foco deve estar no processamento da informação, o mesmo é dizer, no conhecimento que permite construir os dados, sistematizá-los e processá-los com vista à produção de valor acrescentado. Ou seja, o valor e o poder estarão mais nos algoritmos e menos nos dados.
Trata-se de uma velha confusão, de mais de 50 anos, entre o conceito de sociedade da informação e sociedade do conhecimento. Não há economia que se sustente num bem abundante, excessivo e tendencialmente gratuito como é a informação. Pelo contrário, só o conhecimento é escasso, limitado face ao potencial que encerra e tendencialmente sobrevalorizado. Se me é permitida a analogia, a informação tende a desempenhar o papel de matéria-prima e o conhecimento torna-se no verdadeiro “maquinismo” que a processa e cria valor.
Nesta perspectiva, uma sociedade baseada na economia do conhecimento é aquela em que o valor do conhecimento incorporado em bens transacionáveis tende a assumir a maior proporção na cadeia de valor.
O próprio conhecimento é cada vez mais um bem transacionável e um fator de produção, não susceptível de ser confundido com a trilogia clássica da terra, trabalho e capital. O conhecimento assume-se como fator susceptível de ser incorporado na mercadoria de quatro formas distintas:
- O conhecimento incorporado na tecnologia – que é a forma mais tradicional de criação de valor e que o transforma em capital fixo;
- O conhecimento incorporado no produto – que se pode expressar através do design, da marca, de um particular processo de produção ou o conjunto de significados expressos através de símbolos;
- O conhecimento incorporado nas pessoas – o que geralmente se designa por capital humano, enquanto combinatória de capacidades desenvolvidas pelos indivíduos ao longo do seu trajeto de vida;
- O conhecimento enquanto bem intangível susceptível de ser transacionado. Consideram-se nesta categoria os contributos para o avanço do conhecimento científico, as aplicações, as bases de dados sistematicamente organizadas, no que alguns teóricos definem como bens digitais.
O traço comum a estas quatro formas de incorporação de conhecimento é o facto de tratar-se de conhecimento de base científica, aquilo que Daniel Bell previa, já nos anos 70 do século passado, sob a designação de “conhecimento teórico codificado”.
Todas as sociedades tendem a identificar uma forma particular de conhecimento socialmente válido. Nas sociedades pré-modernas, o conhecimento dominante era o construído a partir dos adquiridos da experiência e dos axiomas de base transcendental. Nas sociedades modernas, são os princípios da racionalidade e do conhecimento científico que adquiriram o poder estruturante das culturas.
Neste contexto, importa avaliar os efeitos deste tipo de desenvolvimento nas formas de organização social e na reconfiguração das culturas.
Em primeiro lugar, já estamos a assistir ao que poderemos identificar como “intelectualização do trabalho”. Isto significa que estamos perante uma estrutura renovada do emprego e das qualificações e novos mecanismos de criação e reprodução das desigualdades sociais.
O futuro dificilmente estará do lado dos que não possuem um elevado nível de qualificações. Mas também não estará do lado dos que apenas detêm informação. Muito provavelmente, os ventos soprarão a favor dos que detêm o conhecimento indispensável a processar a informação disponível de forma a construir novo conhecimento socialmente válido e economicamente transacionável, à escala global.
Segunda questão que decorre da anterior: quais as instituições vocacionadas para a produção e difusão desse conhecimento? O sistema de ensino e, com particular relevo, o subsistema de ensino superior e investigação científica. Estas instituições tradicionalmente vocacionadas para a credenciação das profissões de maior prestígio social terão de investir mais na produção de bens de conhecimento transacionáveis e na criação cultural. Quer através da ligação às empresas pelo desenvolvimento de novas tecnologias, quer pela investigação fundamental nos mais variados domínios da ciência, quer ainda pela qualificação competitiva da formação de capital humano, esse é o caminho que se abre a Portugal.
O conhecimento já é e será cada vez mais a base da Riqueza das Nações, para utilizar a velha expressão de Adam Smith. Saibamos nós aproveitar as suas oportunidades e traçar o rumo adequado para as concretizarmos em proveito próprio.
Sexto de uma série de dez textos de David Justino que publicaremos semanalmente, sempre às quintas-feiras, sobre os desafios que enfrentamos em várias áreas, em Portugal e no Mundo. Próximo artigo: “O Estado: um problema de escala ou de estrutura?”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico