Testes diagnóstico à covid-19: capricho e irresponsabilidade no Tribunal da Relação
Sem discutir se o teste de PCR deve ser um critério suficiente para restringir a liberdade de circulação, o esforço evidente para minar de dúvida o resultado destes testes é um comportamento irresponsável e caprichoso.
Os testes de diagnóstico da covid-19 feitos por PCR (“reacção de polimerização em cadeia”) têm gerado frustração e equívocos, levando Cristiano Ronaldo a descrevê-los como uma “merda”. Esta semana, foi noticiado um acórdão em que duas juízas da Relação de Lisboa consideram que a Direcção-Geral da Saúde não tem competência legal para impor isolamento aos cidadãos (a menos que se esteja em estado de emergência ou de sítio). A argumentação recorre a considerandos sobre a esta técnica, tendo as juízas escrito num “legalês” com alguma patine académica o que CR7 expressou em vernáculo. Este texto incide exclusivamente sobre o que a técnica de PCR nos diz e não diz.
Escrevem as juízas que “face à actual evidência científica, esse teste mostra-se, só por si, incapaz de determinar, sem margem de dúvida razoável, que tal positividade corresponde, de facto, à infecção de uma pessoa pelo vírus SARS-CoV-2”. A afirmação é falsa ou, no mínimo, dúbia. Os testes de PCR têm uma especificidade e sensibilidade superiores a 95%, como indicado num artigo que as juízas citam, isto é, na esmagadora maioria dos casos detectam o vírus que provoca a covid-19 (o SARS-CoV-2). Isto não significa que por vezes não haja erros e falsos positivos resultantes de contaminações indevidas de amostras, nem que não seja necessária uma certificação rigorosa dos procedimentos, como sucede com qualquer técnica laboratorial que exija manipulação de amostras, mas não há grande controvérsia. O que se discute hoje é se um resultado positivo de PCR é suficiente para nos dizer se a pessoa ainda pode contagiar outros indivíduos, questão que foi avaliada num dos estudos citados no acórdão.
A PCR é uma técnica que amplifica material genético do vírus em ciclos sucessivos. A cada ciclo o material duplica, tal como na história em que um súbdito responde que quer como recompensa o número de grãos de arroz resultantes de colocar um grão na primeira casa num tabuleiro de xadrez, dois na segunda, quatro na terceira, depois oito e assim sucessivamente até à casa 64. O número obtido é astronómico, para grande tristeza do rei incauto que propôs e aceitou a recompensa. A enorme sensibilidade da PCR assenta nesta progressão geométrica.
No estudo citado no acórdão testou-se a relação entre a capacidade que as amostras nasofaringeais recolhidas tinham de infectar células em cultura com o SARS-CoV-2 e o número de ciclos necessários para obter um resultado de PCR positivo a partir dessas amostras. Os cientistas observaram que a proporção de amostras que já não eram capazes de infectar as células mantidas em cultura no laboratório aumentava com o aumento do número de ciclos necessários para obter um sinal positivo. Isto sucede porque depois de o nosso corpo controlar a infecção há fragmentos do material genético do vírus que persistem e vão decrescendo ao longo de dias, quando o indivíduo já não representa um perigo para os outros.
Por fim, as juízas queixam-se de não ter encontrado informação sobre a carga viral que a pessoa em questão teria (o número de ciclos necessários para obter um resultado positivo). Tal sucedeu porque os resultados comunicados são de tipo qualitativo (positivo ou negativo), não sendo divulgado o número de ciclos. Infelizmente, a pesquisa académica das juízas não as levou a procurar saber qual a proporção de pessoas que têm um teste positivo com um número de ciclos (por exemplo, até 25) a que os estudos em cultura de células associam uma probabilidade de presença de partículas virais infecciosas superior a 70%. Se o tivessem feito, a sua certeza quanto à incerteza associada à partida a um qualquer resultado de PCR talvez tivesse sido abalada (no CEDOC, para 42% dos testes positivos foram precisos apenas 25 ou menos ciclos). E o zelo com que citaram a literatura científica não foi aplicado à leitura do primeiro acórdão, onde se pode ler que seis dias antes a pessoa em causa tinha testado negativo, o que sugere que o teste positivo correspondeu a uma fase activa da infecção, em que o perigo de contágio poderia ser real.
Sem discutir se o teste de PCR deve ser um critério suficiente para restringir a liberdade de circulação, o esforço evidente para minar de dúvida o resultado destes testes é um comportamento caprichoso. As juízas parecem ignorar o princípio da precaução, que nos leva a considerar alguém com um resultado de PCR positivo como potencialmente capaz de contagiar outros porque, apesar da incerteza, as consequências de agir de outro modo poderiam ser desastrosas. Haverá lugar para interpretações sensatas e flexíveis de um teste positivo, sobretudo na presença de informação complementar que reforce a convicção de que o vírus já não está a replicar-se (inexistente no caso apreciado pelo acórdão). Podemos até discutir as (des)vantagens de uma interpretação mais quantitativa da PCR em vez do actual critério qualitativo. Mas é bizarro ver magistrados a instrumentalizar a incerteza de forma tão grosseira. E numa altura em que cresce a contestação à ciência e os argumentos de aparente autoridade tanto contribuem para a propagação de ideias falsas, além do capricho, devemos frisar a irresponsabilidade das juízas.