O eterno jovem sábio
O meu avô nunca se deixou embevecer pela obra que deixava ao país. Em vez disso, a sua conversa era sempre virada para o futuro. Até isso ele foi. Um homem do futuro.
Vivemos e viveremos sempre com amostras da visão de Gonçalo Ribeiro Telles por esse país fora. Umas menos conhecidas, como a caminhada à entrada da Meia Praia em Lagos, que tive a sorte de percorrer várias vezes em criança e, depois, já na adolescência.
Daqui, surge a tal longa caminhada desenhada e concebida pelo meu avô que eu fiz questão de batizar a título pessoal de “amazónica”, e onde se encontra uma passagem estreita de retas e curvas simétricas, ladeadas por uma vegetação que a preenche. Isso e as plantas que, além de criarem uma sombra completa e nos refrescarem, dão a sensação de entrarmos num outro mundo, antes de avistar a chegada à ilha. A tal ilha que é, simplesmente, a Meia Praia.
Mas desta e outras amostras maiores como o corredor verde que liga o Parque Eduardo VII a Monsanto, os jardins da Gulbenkian, entre tantas e tantas outras, o mais gratificante, para além dessa utilidade, evocação da beleza natural e do mundo natural das coisas, é que em cada uma delas verificamos que tudo se coaduna com o que nos transmitiu e ensinou ao longo dos anos. Não existe uma separação entre estas criações e o homem. Entre a obra e o homem. Antes, foram os seus princípios e valores que o levaram a ver e projetar tudo desta forma. E isso foi um testemunho constante que nos foi dado.
Único para a vida.
Lembro-me de como falava da verticalidade e transversalidade como características essenciais ao ser humano e até isso são traços bem presentes nas relações que teve connosco, na sua obra arquitectónica, na ligação entre cidade e campo e mesmo naquilo que defendeu ao longo do seu trajeto político. No qual as ideias e causas prevaleceram sempre sobre o que podia cair pior ou melhor naquele que era o seu campo político de origem.
Ainda há poucos anos o ouvia falar com saudade do entretanto descaracterizado Movimento pelo Partido da Terra que ele criou. Recuo aos tempos em que nós, netos, até posters colocávamos nas nossas casas com a sua imagem pela floresta adentro. Relembro-me também da sua reação quando eu ficava visivelmente chateado com algumas críticas que lhe faziam, desconsiderando ou até mesmo ridicularizando o seu ideal ecológico “desfasado da realidade.” E ele reagia com uma indiferença às mesmas que tanto me espantava como fazia admirá-lo ainda mais. Era uma espécie de suspiro característico que não era mais do que um “perdoai-lhes, Senhor, eles até podem julgar que sabem o que fazem, mas sabem que não sabem o que dizem”.
Também isso, representativo de uma certa forma de estar no combate político pelas suas ideias e ideal que tão pioneiras eram, levava-o a responder sem qualquer desconsideração ou amargura. Antes, a paixão por tudo aquilo em que acreditava levou-o a uma constante e apaixonada pedagogia que não só a nós nos cativava, como mais tarde viria a cativar o país transversalmente.
Foi sempre um eterno jovem sábio aos meus olhos. Até há poucos anos atrás e antes de ficar doente, já com 90 anos, era um dos espíritos mais jovens que conheci. Nunca se deixou embevecer pela obra que deixava ao país. Nunca reivindicou a razão que teve antes de tempo e de tantos não o compreenderem ainda a tempo de muito mais. Em vez disso, a sua conversa era sempre virada para o futuro.
Para os próximos 50, 100 anos. Procurou sempre esse futuro.
Tinha um conhecimento aprofundado e ímpar da história e do passado do país, contextualizava-o à atualidade como poucos, mas vivia o seu presente, pensando sempre no futuro.
Até isso ele foi. Um homem do futuro. O meu avô.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico