Kamala Harris é ambição no olhar. É atitude feroz. É voz firme. Talvez por estar farta de ver homens brancos e mais velhos a concorrer aos mesmos cargos, Kamala, numa lufada de ar fresco, trouxe juventude, segurança e respeito. Fez-me sonhar. A senadora tornou-se, este fim-de-semana, na primeira vice-presidente feminina dos Estados Unidos e, no discurso que fez ao país, garantiu que “era importante ser a primeira no cargo”. “Mas, mais importante, é garantir que não sou a última”, disse. Kamala trouxe, assim, esperança a todas as jovens mulheres pelo mundo fora, mas nem a sua vitória fez esquecer que há uma batalha muito maior que ainda está a ser travada.
As últimas semanas ficaram marcadas por dias difíceis na luta pela igualdade de género: as mulheres polacas perderam o direito total ao aborto e, dessa forma, o direito a controlar o próprio corpo e o próprio futuro; as mulheres brasileiras viram um homem ser ilibado de violação por não ter havido “intenção de dano”, constituindo assim um “estupro culposo”, expressão criada e usada pelo The Intercept “para resumir o caso e explicá-lo ao público leigo”; e o Dia Europeu da Igualdade Salarial veio-nos relembrar que a mulher europeia, que acredita que a igualdade está cada vez mais perto, continua a não receber o mesmo salário médio que o homem europeu.
Assim, 4 de Novembro marcou o dia a partir do qual as mulheres estão como que a trabalhar de graça para os seus patrões. Patrões esses que, entre 72% e 93% dos casos, em Portugal, são justamente do sexo masculino, dependendo dos sectores. Também no nosso país, onde temos a ilusão de que há equidade, dados da Comissão da Cidadania e Igualdade de Género mostram-nos que nas empresas do PSI20, 86% dos cargos executivos são responsabilidade de homens. 80% das vítimas de casos de violência doméstica denunciados são do sexo feminino e 90,5% das violações também. Quanto ao poder de decisão, os homens ocupam quase 70% dos cargos de governos e 92,5% de cargos de presidente da câmara.
No entanto, embora a divisão de poder não seja minimamente igualitária, as mulheres já não aceitam que homens façam leis sobre elas. Esta semana, milhares de mulheres em várias partes do mundo saíram à rua, em plena pandemia, para exigir liberdade, segurança e igualdade. Algo que nunca deveriam ter de fazer. Mulheres são obrigadas a colocarem-se constantemente em perigo apenas para garantir direitos humanos básicos que já deviam ser seus. Mas este movimento feminista, que começou no século XIX, só parará quando a total igualdade de qualidade de vida for alcançada.
Não sou ingénua, sei que esta igualdade não se alcançará na minha geração. Sei que há um longo caminho a percorrer, mas sei também que já não há forma de nos fazerem voltar atrás. Esta geração de mulheres já não se cala. Tem ambição no olhar. Atitude feroz. Voz firme. A geração para quem não é suficiente o direito ao voto, mas o direito a igual acesso ao cargo político. Que não quer apenas fazer parte do mercado de trabalho, quer receber exactamente o mesmo salário. Que não aceita que lhe digam que a culpa é dela, de onde estava ou do que vestia — quer poder dormir com quem quer e, acima de tudo, quer poder não dormir com quem não quer. Esta é a geração Kamala. Esta é a geração das mulheres que vão marcar a história, assinalar as primeiras vezes. Angela Merkel, Kamala Harris, Jacinda Ardern, que venham muitas mais mulheres a mudar o mundo. E se eu nunca chegar a ser uma delas, como elas me fizeram sonhar ser, estou aqui, mulher para mulher, para escrever sobre todas as outras.