A eternidade é hoje
Até sempre, Mestre e Amigo, por tudo o que soubeste acrescentar ao que encontraste no começo da estrada.
Isto parece mas não quer ser uma nota necrológica, e sim, em palavras do poeta Rubén Darío, um canto de vida e de esperança desde a tristeza de uma despedida em momentos de tanta e tantas despedidas, uma lembrança de um caminho — o de Cruzeiro Seixas e os 40 do meu próprio caminho que tive o privilégio de fazer a seu lado — e uma homenagem para contradizer o autor de Eu Falo em Chamas quando ele confessava: “Da minha vida nada vai ficar de definitivo, de concluído, de clarificado. Não tive público, nem amigos, nem amor, que verdadeiramente merecessem esse nome. NÃO VIVI, mas, curiosamente, deixarei documentos desse não viver…”. Muito foi o que (nos) deixou desse seu “não-viver” o “não-artista” Cruzeiro Seixas, respondendo às exigências de Rimbaud de ser sempre e em tudo “absolutamente moderno”, fáustico na procura do Absoluto no ver, no conhecer, no sentir e no dizer.
Desde esse sonho e essa necessidade de Absoluto, Cruzeiro Seixas, como lembrava o professor Moura Sobral, “produziu, quase sem querer, uma obra colossal feita de centenas de desenhos, pinturas, colagens, objectos, esculturas, poemas, contos, e cartas pessoais cuidadosa e generosamente ilustradas”. E ainda poderia ter acrescentado um guião cinematográfico, e os cenários para a Companhia Nacional de Bailado e para o Ballet Fundação Gulbenkian, e as obras colectivas em que participou, como os cadavres-exquis ou os manifestos e textos de intervenção, e os seus próprios textos de crítica e combate — artigos, textos para catálogos, entrevistas —, e, enfim, o seu trabalho de divulgação da obra de outros mestres e amigos através sobretudo das galerias que dirigiu, trabalho esse que necessariamente acabava a derivar em relâmpagos de intervenção e subversão na paisagem gris-negra do Portugal da época.
E tudo sem contradizer as reiteradas e públicas manifestações da sua vocação de solidão e de silêncio: “A solidão que é a minha, a construída, a encontrada, a imposta, tem sido a minha estreita prisão, mas também, hoje, já a minha única possibilidade de libertação […] A solidão é uma das plenitudes possíveis.” Um ilhéu — para não dizer uma ilha — que viveu sempre por e para o susto e a alegria da dúvida, da interrogação e da descoberta — "De certezas não se vive: morre-se” — a mergulhar no abismo para encontrar o novo, como pedia Baudelaire: “Alegria imensa dada ao homem só conheço esta de olhar de frente toda a negrura do abismo.”
E essa ilha foi-se povoando desde muito cedo por centenas e centenas de amigos e de vozes convocados por uma imaginação sempre aberta e febril de que foram saindo poemas, objectos, “diários não diários”, pinturas, colagens, assemblages e desenhos com que foi dando vida aos seus bonecos (assim costumava falar com ternura o demiurgo das suas criaturas). E tudo num espaço cósmico extremamente singular, ao mesmo tempo aéreo e submarino, povoado por seres que espalhavam os seus fragmentos em todas as direcções num horizonte também ele fechado e aberto, nocturno e diurno (não era afinal a síntese das oposições o ponto do pensamento que pretendia atingir o Surrealismo segundo o próprio Breton?). Seres umas vezes em movimento — e não poucas vezes com asas e prontos para o voo ou à beira de barcas com mais céu do que mar para a sua promessa de aventura —, outras vezes numa imobilidade de estátua, e uns e outros com frequência cegos ou sem boca (vítimas da realidade real ou variantes dos símbolos tradicionais do conhecimento e do saber mais profundos e verdadeiros), ameaçados ou feridos por pregos, setas, lanças que falam da alegria e da dor do desejo ou da sua perda e ausência talvez definitiva, e paisagens com olhos que espreitam e procuram fechaduras sem portas para esse olhar e chaves para essas portas que as não há, porque é próprio do Poeta não colocar portas e sim abrir e destruir todas as que encontrar no seu caminho.
No fundo, e voltando ao princípio desta evocação, o sonho de revolução total dos surrealistas: revolução individual interior (consciência moral) e exterior (actuação ética); revolução política e revolução social (quando multiplicadas e conjugadas as individuais), e, obviamente, revolução cultural, estética e poética.
Ou, em palavras do Mestre: “O surrealismo é apenas, para mim, uma filosofia que soube fazer uma longa viagem por outras filosofias, através dos séculos. Nele encontro mais sociologia do que em muitos políticos e sociólogos. A literatura e a arte, é que quase não as vejo ali. Para mim um quadro, ou um livro, será sempre, principalmente, a presença de um homem, (e dos homens), na sua luta de todos os dias. A propósito ou a despropósito, direi que é das piores condenações que o homem tem de sofrer, essa de haver homens que querem pensar por todos os outros homens. Dizem alguns que sou um surrealista ortodoxo na obra que vou realizando; aproveito no entanto a ocasião para esclarecer a quem queira ser esclarecido, que o serei efectivamente, mas tão só enquanto não descobrir uma outra porta, que me leve a um outro espaço. […] Surrealista ou não surrealista? Que importa? A eternidade é hoje — ou não será nunca.”
Artur Manuel embarcou com Mário no seu Navio de Espelhos e navega já à procura do Segredo da Pirâmide. Até sempre, Mestre e Amigo, por tudo o que soubeste acrescentar ao que encontraste no começo da estrada.