América volta a ser Great Again
Na semana em que todos os dias foram dia 3 de novembro, o mundo vai voltando ao normal. Embora em Portugal há quem vá a contra corrente.
Esta semana era daquelas fáceis de memorizar o calendário. Havia um dia marcado que ofuscava os demais. Segunda-feira, 3 de novembro, terça, 3 de novembro, quarta, 3 de novembro, quinta, 3 de novembro... Como sabem, ainda hoje, sábado, 3 de novembro, continuamos fascinados pelo dia do voto americano, o 3 de novembro que aconteceu lá bem atrás. Pois esta semana, consubstanciada no 3 de novembro de 2020, as gazetas portuguesas anunciaram: “PSD e Chega chegam a acordo.” Foi nesta semana, esta semana!, que eles se lembraram disso.
Um concubinato tão extraordinário que até os inocentes jornalistas se sentiram obrigados a dar uma demão na notícia. As uniões costumam ser anunciadas respeitando a ordem de importância dos novos parceiros. É a Madona que se casa com um novo marido. Nos sorteios da Taça de Portugal, é o Benfica que joga com o Carcavelinhos. E num acordo entre o PSD e um coiso é o grande partido que tira o coiso da fossa (aviso do autor desta crónica: não tira, pela mesma razão que, juntas na cesta da fruta, uma maçã sã não recupera a maçã podre).
Ora, nenhum jornal escreveu “PSD e Chega chegam a acordo”. Escreveu-se invertendo os protagonistas, em fórmula quase unânime: “Chega e PSD chegam a acordo”. Isso, para que não ficasse exposta a contradição evidente: os termos “Chega”, significando basta, e “chegam”, significando aproximação, foram afastados um do outro... É natural, tudo em que André Ventura toca se transforma em moscambilha. É como tudo em que toca Donald Trump.
E aqui chegamos a um mistério. O acordo entre o PSD e o Chega ainda poderia ser justificado por tremideira causada pela expectativa de nova vitória de Donald Trump. Sim, um segundo mandato não só devastaria o seu país — como o antipatriotismo do Presidente Trump salientou nestes dias do seu estertor — mas também assustava a Europa e Portugal. Daí o “eh pá, vamos apaziguar a sucursal caseira antes que ela suba de cotação com a vitória da sede americana.”
Acontece, porém, que o famigerado acordo português foi anunciado não na segunda e terça-feira, antes dos resultados da eleição americana, mas quando a Humanidade já suspirava de alívio. Num estúdio da CNN, Rick Santorum, ex-senador republicano e ex-candidato presidencial em primárias do seu partido, pedia condescendência com os derrotados: “Há que dar tempo e espaço para que [Trump] possa trabalhar os seus sentimentos de perda”. Minutos antes, Donald Trump arrastara os pés pela Casa Branca e rugira gaguejando — cobra moribunda e sem unhas — as suas derradeiras ameaças. Ainda vou ter saudades de um tipo que me permite as mais disparatadas imagens.
Já volto à cena final de Trump que levou um político honesto e experimentado como Santorum a reformar-se como terapeuta de casos agónicos. Mas deixem-me arrumar as consequências nacionais desse drama. Como foi possível o PSD envolver-se com um sucedâneo de Trump no exato momento em que o real Donald Trump lerpava? O perguntar é-me respondido por personagens de Eça de Queirós a irem buscar as novidades de Paris, chegadas pelo Sud Express. Em Portugal as novidades chegam sempre atrasadas… Será que o honesto e experimentado terapeuta Rui Rio também espera de nós comiseração quando o Ventura se puser a rugir como a coelhinha Acácia?
Arrumado o caso português — porque subcaso e fora de tempo — voltemos ao estúdio da CNN. Esta semana, aquilo pareceu uma repetição de O Dia da Marmota. Vocês sabem, o filme em que Bill Murray acordava todos os dias com a sensação de repetir o dia anterior. Um incessante déjà vu. Interpretando um jornalista que fora reportar para uma cidadezinha da América, onde a marmota surgia todos os anos anunciando a primavera, Murray acordava sucessivamente para viver a mesma jornada. Também a reportar uma tradição, a eleição presidencial, os jornalistas da CNN começaram por ter um clímax, o susto inicial de Trump ganhar, logo seguido do anticlímax, o Presidente perdeu. Mas, durante dias e dias, não havia meio de se oficializar a coisa.
Então, durante dias seguidos, o estúdio pareceu um livro tão emocionante como a leitura da grossa e antiga Lista Telefónica. Folheando, os números saltavam, mas não havia enredo, com uma agravante: só havia dois protagonistas, Joe Vencedor e Donald Perdedor. A tecnologia era maravilhosa, mapas com duas cores fortes, azul e vermelha, mas, lá está, nem o narcisista tomava juízo, nem a gente almoçava.
E, no entanto, havia para ver. Já falei do embaraço de Rick Santorum, apanhado nas teias da indesculpável submissão republicana ao inimputável. E, depois, houve este Trump, igual a si próprio. Uma primeira convocatória das câmaras, e do mundo suspenso, à Casa Branca, quando Donald Trump já teria as suas suspeitas sobre o que lhe ia acontecer. Havia ainda sete estados potenciais decisivos e o Presidente inventando as regras de um estranho desporto, a declarar no meio do jogo: “Parem de contar!” Pudera, acabara de meter um golo na Florida e outro no Ohio… Pudera, levava, então, vantagem em Michigan, Wisconsin, Geórgia, Pensilvânia…
Estranho grito no meio de uma eleição: “Parem de contar!” E quando se continuou a normalidade eleitoral, isto é, contar, e se tornou justificado o contar — pois o dado de barato no meio de uma eleição pode mudar — o Twitter de Trump endoidou: “Fraude”, “estão a roubar-nos”… Depois, convocou novo encontro na Casa Branca quando Biden passou a encabeçar a Pensilvânia (estado, que a ser ganho pelos democratas, daria a vitória ao seu candidato). No estúdio, o comentador David Axelrod alertou: “Espero que ele não diga o que vai dizer, as palavras de um Presidente não são palavras quaisquer…”
Lembrei-me que em 2008 eu estava em Norfolk, Virgínia, no primeiro discurso ao vivo que ouvi de Barack Obama. Estratega da campanha, Axelrod também lá estava, entre os jornalistas. A primeira presidencial de Obama acabava e foi nessa noite que reconheci o sentido histórico do que se estava a passar. Aconteceu-me o instante que vivera a minha filha, ainda bebé, quando a levei pela primeira ao Jardim Zoológico de Lisboa. Mostrei-lhe entusiasmado a girafa. E ela ergueu os olhos, viu um pardal, não mais o largou e sorriu, sorriu, como num imenso agora.
Eu vi Obama mas, já fora do estádio de Norfolk, dei com os meus olhos presos num burguês negro, sobretudo de bom corte, sapatos a brilhar. Ele caminhava na noite, solitário e dizia baixinho: “Eu estou a viver isto… Eu estou a viver isto…”
Esta semana, na segunda convocatória à Casa Branca, Trump tinha para nos dizer a sua pequenez: “Fraude”, disse ele. Ele começou a sua presidência com uma palavra, “fake”, para tentar derrubar uma instituição americana, os jornais. E acabou os quatro anos com a mesma palavra, “fake”, para tentar derrubar o voto, outra instituição americana.
Ele não sabe o que é grandeza de uma pátria que tem um desconhecido negro de sapatos engraxados e na boca a História murmurada; e que tem a grandeza de um conhecido branco derrotado e capaz de ler números: “O povo americano falou”, disse, em 2008 o senador John McCain, reconhecendo a vitória do adversário Obama.
Esta semana será fácil de lembrar, a América é great again. Oxalá não mais se perca.