Covid-19, como chegámos aqui: da iliteracia em saúde à má estratégia comunicacional
Mensagens contraditórias geram confusão e dúvidas e nada contribuem para a coesão comportamental tão necessária no combate a uma pandemia. É dos livros.
No passado dia 30 de março – completava-se então a quarta semana da pandemia SARS-CoV-2 em Portugal – publiquei no PÚBLICO um artigo com o título “Temos que nos preparar para uma eventual segunda onda pandémica”. Esse título continha as duas ideias principais que se pretendiam transmitir: que iríamos passar por uma segunda onda, e que, desde logo, nos devíamos preparar para a enfrentar. Pois bem, relativamente à primeira, infelizmente confirmou-se, estamos a vivê-la. Quanto à respetiva preparação, a presente realidade indica que não o fizemos de forma adequada.
Perante a impossibilidade de confinar de novo o país e na ausência de uma vacina e de fármacos específicos, a preparação de uma segunda onda pandémica deveria ter sido estruturada em três braços: aumentar o mais possível a nossa capacidade de testagem, fortalecer os serviços de saúde e “blindar” a maioria possível da população da infeção. Os dois primeiros objetivos foram genericamente atingidos. Quanto ao último, que só era realizável se tivéssemos tido a capacidade de impor as únicas medidas de proteção disponíveis (distanciamento social, proteção respiratória, isolamento dos doentes e dos seus contactos, e medidas de higiene e de desinfeção), falhámos por diversos motivos: desacertos na atuação das autoridades, comportamentos desadequados de muitos cidadãos e, sobretudo, uma estratégia comunicacional errada, realçando que a estratégia comunicacional é uma componente essencial no controlo de qualquer pandemia.
O papel das autoridades foi ciclópico e na generalidade meritório. Porém, nem tudo correu bem.
Por exemplo, a posição das autoridades sanitárias relativamente às máscaras de proteção facial foi no mínimo incompreensível. Começou com o seu desaconselhamento; depois passou à sua obrigatoriedade nos espaços públicos interiores. Foram precisos oito meses para se aprovar uma lei que a tornasse obrigatória também nos espaços públicos exteriores, sempre que o distanciamento social não estivesse garantido. O problema é que entre as duas etapas de sinal contrário mediaram oito meses, período durante o qual se poderiam ter evitado milhares de infeções com as respetivas cadeias de transmissão. A este propósito tivemos um momento invulgar, com uma alta autoridade em saúde pública a desvalorizar o papel de um dos mais importantes equipamentos de proteção individual, com eficácia demonstrada em numerosos estudos científicos. Óbvia nos espaços públicos interiores, a máscara é uma importante ferramenta protetora também nos espaços públicos exteriores, até porque o distanciamento social de segurança recomendado de dois metros pode ser insuficiente para nos proteger do espirro ou da tosse de uma pessoa infetada, situações em que as gotículas infecciosas podem atingir distâncias superiores a seis metros.
Outro aspeto negativo da atuação das autoridades foi o da veiculação de mensagens contraditórias que nada contribuíram para a coesão comunitária, um dos aspetos mais relevantes verificados na primeira fase da pandemia – nessa fase estivemos “todos juntos”.
Por exemplo, como é que um cidadão articula a necessidade do distanciamento social que lhe é solicitado, com a autorização de espetáculos, comemorações, festas e eventos desportivos em que estão milhares de pessoas, nalguns casos até altos responsáveis políticos?
Como se pode pedir aos cidadãos que compreendam a decisão do confinamento global do país, que aconteceu num dia em que se registaram 785 novos casos, e sete meses depois ter sido autorizado um evento desportivo automobilístico que teve uma assistência de 27.500 pessoas, num dia em que aconteceram 2447 novos casos e 27 óbitos?
Admito que é difícil resolver o problema da aglomeração de pessoas nos transportes públicos sobrelotados (também aqui faltaram medidas coerentes), mas aquelas que aconteceram nos eventos referidos eram evitáveis.
Que ninguém tenha dúvidas: por mais que se respeitem as normas decretadas pela DGS, quanto mais e maiores aglomerados de pessoas existirem, maior será o número de casos de infeção gerados, e pensar que todos os presentes cumprem as regras é no mínimo ingénuo. É que nesta pandemia as pessoas nem precisam de estar doentes para transmitir a infeção. Estamos perante um vírus traiçoeiro, admiravelmente adaptado ao seu hospedeiro: aproveita-se dele para se reproduzir, muitas vezes silenciosamente, sem qualquer tipo de manifestação.
A OMS prevê que o uso generalizado de máscara, associado ao controlo dos ajuntamentos sociais, possa evitar nos próximos meses 280.000 óbitos, e isto apenas nos 53 Estados-membros da região europeia!
Mensagens contraditórias geram confusão e dúvidas e nada contribuem para a coesão comportamental tão necessária no combate a uma pandemia. É dos livros.
Também falharam muitos cidadãos. Os vários sinais de abertura da atividade económica que as autoridades foram transmitindo à população foram lidos por alguns de uma forma inadequada, como se o problema infeccioso estivesse resolvido. A iliteracia em saúde falou alto. O resultado foi o de um desadequado relaxamento social, sobretudo nas camadas populacionais mais jovens, ávidas de uma natural convivialidade. Para eles o distanciamento social terminou e assistimos a ajuntamentos de pessoas não protegidas muito para além do permitido pela lei, muitas vezes com a inexplicável complacência das autoridades. O que se passou recentemente na Praia do Norte, na Nazaré, representa o pico da irresponsabilidade cívica e da incapacidade das autoridades fazerem cumprir a Lei. Naquele momento, naquele sítio, todos estiveram fora da lei.
E houve até pessoas que passaram à militância. Nas redes sociais e inseridas nos movimentos “antissistema” (apoiantes de teorias da conspiração que põem em causa as autoridades), também tivemos posições antimáscara, consubstanciadas em petições públicas online à Assembleia da República e queixas à Provedoria de Justiça. Mais grave, porque ética e deontologicamente inaceitável, é o movimento “Médicos pela Verdade”, grupo de profissionais da saúde que desvaloriza a importância da pandemia e é contra o uso generalizado de máscara, de testes em pessoas assintomáticas e do isolamento profilático. Tais posições têm felizmente uma dimensão residual, mas como circulam nos media sociais há o risco de se tornarem mais robustas. Para além de contestação elas traduzem ignorância e falta de informação e há que as saber corrigir. Sem dúvida que a melhor forma de o fazer é através de uma informação correta inserida numa boa estratégia comunicacional e esta esteve mal em muitos aspetos: falou-se muito, comunicou-se pouco.
Comunicar em saúde não é uma tarefa fácil atendendo à diversidade das populações-alvo envolvidas – urbanas, suburbanas, rurais, grupos étnicos, pessoas com diferentes graus de literacia, etc. –, todas com características diferentes mas com um objetivo comum: estarem na posse da informação que lhes permita evitar a infeção.
Uma estratégia comunicacional em saúde deve cumprir vários pressupostos, como o de ser adaptada ao recetor, provocar nele interesse e empatia, ser veiculada de forma adequada à população a que se destina e, no nosso país, ser estruturada de acordo com uma população que apresenta um dos mais baixos níveis de literacia em saúde do continente europeu. E nada disto aconteceu.
Comunicar vai muito para além de informar. E tivemos muita informação e pouca comunicação. A estratégia comunicacional das autoridades não foi conseguida, pois, de um modo geral, as mensagens não chegaram ao destinatário: a população.
Toda a informação necessária esteve presente, e bem, no site da DGS, afixada à porta das instituições, divulgada nos briefings diários das autoridades da saúde e ampliada através dos órgãos de comunicação social, com uma particular relevância para os do audiovisual. Porém, uma pergunta pertinente: qual é a percentagem da população portuguesa que visita esse site, assiste aos briefings, está atenta à informação afixada nas paredes, lê jornais ou vê os telejornais? Sem qualquer dúvida, baixíssima (a título de exemplo, nem um terço dos portugueses assiste aos jornais televisivos no prime time). Ou seja, para a maioria das pessoas a informação, apesar de robusta, passou ao lado.
A estratégia comunicacional das autoridades da saúde foi uma estratégia direcionada para dentro e para uma minoria que tem acesso a níveis privilegiados de informação. Para ter sido eficaz, a estrutura comunicacional deveria ter utilizado a sociedade civil como veículo: parceiros sociais, grupos cívicos, ONGs, juntas de freguesia, grupos religiosos, grupos desportivos, associações de estudantes e centenas de outros grupos possíveis. Toda a sociedade civil deveria ter sido chamada, de forma organizada, para uma ação concertada e permanente que explicasse aos cidadãos (a todos os cidadãos) os principais comportamentos necessários para se precaverem da infeção. É que na ausência de uma vacina e de medicamentos eficazes eles constituem-se como a única arma de que dispomos para esse objetivo. E foram eles que em muitos casos falharam. Por ignorância, desleixo ou falta de informação.
Para o evitar, toda a estrutura comunicacional deveria ter sido posta ao serviço da transmissão das mensagens de saúde pública. Por exemplo: que o distanciamento social é fundamental porque se estivermos a menos de dois metros de distância de outra pessoa, estamos a inalar os produtos por ela exalados, incluindo os vírus; que é importante usar máscara em todos os espaços públicos, mesmo no exterior, porque o ato de espirrar ou tossir envia microrganismos até seis metros de distância; que a proteção da máscara depende da sua utilização correta, pelo que as respetivas regras deveriam ter sido muito mais difundidas; que a lavagem das mãos é importante porque o SARS-CoV-2, que permanece viável na pele durante nove horas, é destruído com uma correta lavagem com água e sabão, desde que ela seja feita pelo menos durante 20 segundos; que a desinfeção das mãos com um soluto alcoólico inviabiliza os vírus desde que demore 15-20 segundos; que os procedimentos incluídos na chamada “etiqueta respiratória” reduzem significativamente a transmissão do vírus. E mais, transmitir às pessoas um conceito que parece ter sido esquecido, o da perceção dos riscos: de adoecer, de ter que ser internado num hospital, de passar um mês numa UCI, de ficar com sequelas permanentes e de morrer.
Estas eram as mensagens que deviam ter chegado a todos os portugueses e basta andar na rua para ver que, apesar de repetidas até à exaustão pelos responsáveis da saúde, elas não chegaram a uma grande parte da população. Falhou a comunicação. E foi pena, pois se tal tivesse acontecido não estaríamos a registar o atual número de infeções e de fatalidades. E teríamos poupado recursos. É que na ausência de uma vacina, uma comunicação bem estruturada que chegasse aos cidadãos e que os motivasse para atitudes comportamentais responsáveis, constituir-se-ia como a medida com a melhor relação custo-efetividade, Teria, por outro lado, tornado a afirmação de que “todos tínhamos que ser agentes de saúde pública” mais do que um mero slogan. Dito de outro modo: a comunicação deveria ter saído dos gabinetes e chegado a todo o lado, dos centros urbanos às aldeias passando pelas periferias suburbanas.
Um outro aspeto da comunicação prende-se com os órgãos da comunicação social. Como seria expectável, a cobertura noticiosa por parte da comunicação social, sobretudo a do audiovisual, foi intensíssima e constituiu-se como a principal componente comunicacional desta pandemia. Porém, o seu core business é a “notícia” e foi isso que tivemos, muitas vezes servida de forma exaustiva e excessiva – excessos informativos sobretudo à custa das “más notícias”.
Foi através da comunicação social que muitos cidadãos tiveram acesso à informação sobre a pandemia. Igualmente foram os órgãos de comunicação social que se constituíram como uma barreira à pandemia da desinformação (fake news, teorias da conspiração e posições antissistema) que circulou pelas redes sociais.
Porém, o generalizado excesso informativo deu origem a muitas situações de enviesamento cognitivo, que deformaram a realidade e estiveram na base de muitos casos de ansiedade, medo e depressão que afetaram muitas pessoas, sobretudo os mais idosos.
Se a “notícia” teve a natural prioridade, aspetos como o ensino e a pedagogia foram subalternizados, estando muito poucas vezes presente (saudemos as exceções, que as houve). Para os portugueses teria sido muito útil que os órgãos de comunicação social, sem dúvida agentes fundamentais em qualquer estratégia comunicacional, tivessem sido igualmente agentes de saúde pública em tempos de pandemia, indo para além da notícia, transmitindo de forma mais insistente as recomendações sanitárias e as atitudes comportamentais indispensáveis para o seu controlo.
Estamos a meio de uma pandemia. A experiência de pandemias anteriores faz-nos conjeturar que ela está para durar. É que o SARS-CoV-2 apresenta uma elevadíssima infecciosidade e os 46 milhões de pessoas que até agora infetou representam apenas 0,6% da população mundial. Por isso, este vírus tem ainda um longo caminho para percorrer.
Da presente pandemia temos uma experiência adquirida de dez meses. Sabemos que, enquanto não houver uma vacina, temos nas atitudes comportamentais responsáveis o nosso melhor aliado. Sabemos que essa mensagem, que deveria ter sido insistentemente transmitida aos cidadãos, foi-o de uma forma pouco eficaz. Sabemos também que muitos cidadãos não tiveram um comportamento adequado a tão grave problema de saúde pública. É imperioso e urgente que se corrijam estas duas componentes do combate ao SARS-CoV-2 e isso inclui uma estratégia comunicacional correta e mais agressiva. É que esta pandemia, acreditem, está ainda muito longe de chegar ao fim. Até porque noutras pandemias, como por exemplo a “gripe espanhola”, a tal que aconteceu há 100 anos, verificou-se até uma terceira onda pandémica.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico