EUA em Novembro, Portugal em Janeiro
Mais uma vez, as eleições americanas serão um laboratório de aprendizagem para os nossos aprendizes de feiticeiros nas redes sociais e as nossas próximas eleições presidenciais serão o próximo passo lógico na construção da desinformação eleitoral em Portugal. Daí que não seja apenas importante quem vence nos EUA, mas também como se vence e perde.
O escândalo de há quatro anos envolvendo a Cambridge Analytica, o Facebook e a evidente manipulação de dados pessoais de milhões de Americanos para fins de campanha política evidenciou duas questões: primeiro, que os dados que inadvertidamente autorizamos empresas tecnológicas a deter podem e são usados para fazer micro-targeting em nós e, segundo, que estas mesmas empresas tecnológicas, não obstante o seu impacto mundial, não deixam de ser instituições privadas cujo fim último é o lucro.
A narrativa mediática construída concentrou-se em dois atores bem identificados, o Facebook e a Cambridge Analytica, e deixou de fora várias outras empresas tecnológicas com o mesmo tipo de práticas. O RGPD criou na Europa uma falsa sensação de segurança quando a realidade, que todos conhecemos, é que é praticamente impossível operar como cidadão digital sem ceder os nossos dados a terceiros.
No presente debate sobre desinformação e as eleições americanas deste mês, a herança do escândalo de há quatro anos é evidente e a principal preocupação dos especialistas, plataformas e instituições governamentais parece ser impedir que a história se repita. Nos últimos meses assistimos a uma vasta abertura e extensão de apoios do Facebook à academia e aos investigadores de desinformação em particular. Acompanham-se as discussões diárias nas redes sociais à procura de ações orquestradas de desinformação e possíveis campanhas de manipulação com base em dados pessoais. Todos à procura do que já conhecem, num silogismo que reconhecemos nas horas perdidas em segurança aeroportuária com medo de outro 11 de Setembro.
Ora, numa estrutura celular e orgânica como as redes de terrorismo, com uma hierarquia difusa e muitas vezes inexistente, faz sentido a preocupação com as réplicas. No caso da manipulação de eleições por parte de entidades estrangeiras e atores nacionais, que já demonstraram capacidade, motivação e criatividade para o fazer uma vez, focar apenas numa ação semelhante talvez seja subestimar o outro lado.
Nesse sentido, parece curioso que não exista muita preocupação relativamente às plataformas de mensagens, nomeadamente o Facebook Messenger e o WhatsApp, ambos propriedade do Facebook e que têm cerca de 133 e 68 milhões de utilizadores, nos Estados Unidos, um país com aproximadamente 330 milhões de habitantes.
A tecnologia necessária para enviar milhões de mensagens a um grupo de utilizadores existe. A pandemia cria o clima para a busca de verdades simples e salvadoras ao virar da esquina. A existência de dados pessoais sobre os nossos padrões de vida e a sua ligação ao nosso número de telefone é indiscutível. É verdade que as mensagens não permitem a divulgação em escala de uma rede social, mas a privacidade e a inexistência de um moderador permitem a um actor malicioso concretizar três objetivos essenciais na manipulação eleitoral: primeiro, chegar ao seu público alvo sem correr o risco da linha de comunicação ser cortada; segundo, impedir ou dificultar que as instituições respondam atempadamente com uma contra-narrativa, porque poderão aperceber-se já tarde demais; terceiro, uma vez identificada a campanha, não há qualquer tipo de capacidade de remover o conteúdo ou impedir a sua viralidade. Se aliarmos a isto o desenvolvimento da capacidade dos vídeos deep fake, em que mesmo o utilizador mais astuto terá dificuldade em distinguir a realidade da ficção, estaremos perante uma possível tempestade perfeita.
Mais uma vez, as eleições americanas serão um laboratório de aprendizagem para os nossos aprendizes de feiticeiros nas redes sociais e as nossas próximas eleições presidenciais serão o próximo passo lógico na construção da desinformação eleitoral em Portugal. Daí que não seja apenas importante quem vence nos EUA, mas também como se vence e perde.
Inês Narciso, Investigadora no MediaLab Iscte
Gustavo Cardoso, Professor do Iscte
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico