A Convenção de Faro – Presente e futuro…
O património cultural como realidade aberta apenas pode ser um fator de coesão, de cidadania, de respeito mútuo e de sustentabilidade se mobilizar vontades concretas.
São já 15 anos que passam sobre a data em que o Conselho da Europa aprovou a Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea, em finais de outubro de 2005. O instrumento internacional entrou em vigor com as ratificações necessárias em junho de 2011 e recentemente contou com a adesão de países como a Suíça e Itália, esperando-se que o impulso do Ano Europeu de 2018 tenha contribuído para uma nova mobilização em torno de um tema que é prospetivo e tem a ver com a democracia. De facto, quando emergem leituras unilaterais e redutoras sobre as identidades nacionais, importa reter e desenvolver a perspetiva universalista dos direitos e deveres que a cultura abrange – e que estão no cerne do debate atual sobre a cidadania inclusiva, a participação e a responsabilidade cívicas, que exigem o respeito por uma memória plural e cosmopolita, capaz de respeitar e integrar as pessoas e as sociedades sem as dissolver ou empobrecer.
A cidadania não é um mínimo múltiplo comum, é uma convergência, um encontro e um diálogo permanente. Nada do que é humano pode ser-nos estranho, por isso o respeito mútuo exige a não indiferença. Cada um tem de se sentir plena e igualmente considerado e respeitado. E que é a história da cultura senão um caminho de passagem gradual da perspetiva exclusiva para a dimensão inclusiva? Não esqueço o trabalho árduo e complexo que desenvolvemos em Estrasburgo para chegarmos à redação da Convenção e ao reconhecimento dos novos desafios. Vínhamos da guerra dos Balcãs e de uma cegueira identitária, que continua a emergir de onde menos esperamos, como aconteceu em Palmira, lugar de destruição e de assassinato de um arqueólogo respeitado, mas antes acontecera noutros locais e no Kosovo, região que se tornou mártir.
Contudo, o património cultural como realidade aberta apenas pode ser um fator de coesão, de cidadania, de respeito mútuo e de sustentabilidade se mobilizar vontades concretas. Daí a importância de iniciativas como as da Europa Nostra, rede europeia de defesa da diversidade cultural, relativamente ao Património ameaçado, com a escolha anual dos sete bens mais ameaçados. Portugal teve, ao longo da iniciativa, dois casos exemplares – o do Convento de Jesus de Setúbal e o dos carrilhões do Convento de Mafra. Nos dois casos, foi fundamental a compreensão das autoridades locais e nacionais – e hoje não só foi possível restaurar o monumento de Setúbal, como uma das joias da nossa memória histórica, segundo as melhores práticas internacionais, mas também fazer regressar os carrilhões de Mafra à sua preservação – num contexto que permitiu a classificação do Convento e Palácio Nacional de Mafra na lista do património mundial da UNESCO.
Ao receber o Prémio Helena Vaz da Silva, o cardeal José Tolentino Mendonça, há dias na Gulbenkian, disse, a propósito do livro, mas pode aplicar-se aos exemplos de património cultural material e imaterial, que “a forma atual do livro em papel é uma etapa de uma história mais longa que começou pelos textos gravados em pedras, em tábuas de argila e em rótulos, história que continuará o seu caminho”. Edgar Morin fala de uma permanente metamorfose, Umberto Eco numa tecnologia irremovível, ao lado de tantas outras, e que constitui a essência do património cultural, desde um monumento antigo à criação contemporânea, passando pelas tradições imateriais e idiomas, pela natureza e pela paisagem, pelo mundo digital e pelas novas tecnologias de informação e comunicação.
Eis por que o património cultural constitui a presença necessária da memória viva, expressão material e espiritual de respeito mútuo e complementaridade – numa palavra, fator de autêntico patriotismo prospetivo e constitucional, capaz de ligar o tempo e a reflexão, a consciência da imperfeição e a necessidade de não renunciar a sermos melhores, o respeito dos direitos e deveres fundamentais e a consciência de uma dignidade universal colocada ao serviço de todos. A tentação de não nos empenharmos nas causas exigentes e atuais de respeito da dignidade humana, em benefício de uma lógica retrospetiva ou absurda de reconstrução da consciência histórica, tem de dar lugar à mobilização de vontades no sentido de garantir no presente e para o futuro a salvaguarda do património, da herança e da memória, não como ficções, mas como uma aprendizagem democrática, de abertura, respeito mútuo e de paz. O património não se pode fechar sobre si, mas deve tornar-se fator de autêntico aperfeiçoamento… Eis o que está em causa.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico