Quem diz que não há falta de médicos?
Tenho imenso respeito pela diversidade de opiniões, mas tenho ainda mais pela veracidade dos factos e sua correta interpretação. E o que os factos nos dizem é que Portugal tem, indubitavelmente, menos médicos dos que seriam necessários para responder às necessidades do País.
Têm surgido algumas opiniões nesta fase pandémica, que considero menos esclarecidas, a defender que não há falta de médicos em Portugal e que até teríamos médicos a mais.
António Barreto, sociólogo reputado, foi uma das vozes que defendeu recentemente esta tese algo surpreendente. Trata-se de uma leitura desatenta e pouco cuidada dos dados publicados internacionalmente e indicia um profundo desconhecimento da realidade do País no setor da saúde.
A realidade é conhecida de todos, dos agentes do setor, dos profissionais e dos doentes que recorrem aos hospitais e às unidades dos cuidados de saúde primários: há falta de médicos, há especialidades médicas com mais carências do que outras, e há zonas do país muito deficitárias. Em suma: temos um país com uma dotação insuficiente em médicos e, sem qualquer dúvida, profundamente desigual territorialmente e também por especialidades médicas.
O que proponho fazer não é um desmentido, mas sim dar um contributo ao conhecimento e à verdade.
Os indicadores da OCDE (OECD Health Statistics 2019) – que são aqueles em que, por exemplo, a Pordata se baseia – analisam a demografia médica de 44 países. Nesse ranking, Portugal encontra-se colocado numa honrosa terceira posição, com cinco médicos por 1000 habitantes, atrás da Grécia (6,1) e Áustria (5,2) e muito a frente de países como a Alemanha (4,3), Espanha, França ou Reino Unido (2,8).Este dado tem servido de argumento para justificar a tese de não haver falta de médicos.
À primeira vista, e numa leitura superficial dos dados, estaríamos tentados a fazer essa interpretação errada. No entanto, são acrescentados alguns comentários no documento que não devem ser ignorados e que citamos na fonte original: “1. Data refer to all doctors licensed to practice, resulting in a large over-estimation of the number of practising doctors (e.g. of around 30% in Portugal)”, como referências para a Grécia, Portugal e Chile; e “However, numbers in Portugal and Greece are over-estimated as they include all doctors licensed to practise”.
Isto significa que os dados que Portugal envia para a OCDE incluem todos os diplomados em Medicina – independente de estarem ou não no ativo –, tal como todos os médicos reformados e sem nenhuma atividade clínica ou os médicos que, mantendo a sua inscrição na Ordem dos Médicos portuguesa, emigraram definitivamente ou trabalham temporariamente no estrangeiro. Considerando esta ressalva, Portugal passa, deste modo, de um 3.º lugar para 16.º lugar com 3,6 médicos por 1000 habitantes.
O que ainda é mais preocupante é o facto de o próprio Ministério da Saúde publicitar ostensivamente estes dados tendo a perfeita consciência do grave viés que está a introduzir, ao considerar para o estudo todos os médicos vivos e não somente os médicos no ativo em Portugal, como seria correto. É, no mínimo, uma atitude pouco séria, uma vez que é o Ministério da Saúde que fornece os dados à OCDE.
Segundo os dados do ministério, em setembro de 2020, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tinha 29.566 médicos, um terço dos quais são médicos em formação. O SNS tem menos de 20.000 médicos especialistas que estão concentrados no litoral e nos seus principais centros urbanos.
O único caminho para inverter esta situação é criar condições humanas, estruturais e organizativas, nos hospitais e centros de saúde, para melhorar a formação, permitindo formar mais médicos especialistas com a qualidade imprescindível e inalienável. Este é, para mim, o ponto mais importante. Mais do que números, dados e gráficos, nunca poderemos prescindir da qualidade da formação dos nossos profissionais.
Tenho imenso respeito pela diversidade de opiniões, mas tenho ainda mais pela veracidade dos factos e sua correta interpretação. E o que os factos nos dizem é que Portugal tem, indubitavelmente, menos médicos dos que seriam necessários para responder às necessidades do País.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico