O futuro em debate: a “geração desenrasca”?
Somos uma geração em permanente dívida, estruturalmente condenada a não atingir os níveis de vida dos pais, assustada com a perspectiva de catástrofes naturais iminentes, com uma saúde mental à beira do colapso, a quem foi prometido um paraíso da democracia, dos direitos fundamentais, da justiça e da igualdade de oportunidades que não existe.
Sou da geração portuguesa dos anos 90. Passei a minha infância agarrado aos livros de aventuras e aos desenhos animados na televisão. Para além de pôr a mesa ao jantar e levar o lixo à rua, os deveres da minha infância eram pouco mais que os escolares. A comida chegava quente e a tempo e horas, a roupa aparecia-me lavada e passada, quando chovia tinha quem me deixasse à porta da escola.
São privilégios que a minha mãe não teve, e com que a minha avó nem sonhou, e se os elenco aqui é meramente para vos assegurar de que estou consciente dessas diferenças, que se usam muitas vezes para nos dizer “não se queixem”.
Mas essa evolução da qualidade de vida foi de certa forma expectável: cada geração parte do ponto onde a anterior a deixou, construindo a partir daí os seus progressos. Uma geração nasce com a obrigação de fazer melhor que a anterior – e até há pouco tempo, não era difícil. Os dados sugerem, contudo, que a minha geração não fará.
É muito comum membros de uma geração culparem a que lhe precedeu por todos os males enquanto mostram desprezo e superioridade pela que se lhe segue. Não contem comigo para fazer essa figura. Mas precisamos de falar seriamente, com todos à mesa e as facturas na mão, sobre a situação em que estamos.
A minha geração nasceu numa democracia segura, revitalizada pelos dinheiros europeus e progressos tecnológicos. Os nossos pais que tiraram cursos superiores tiveram empregos à saída da faculdade e acesso facilitado a crédito. Trabalharam a vida inteira com a expectativa de uma reforma que, não sendo dourada, tem pelo menos a vantagem de ser mais ou menos certa. Regra geral, tiveram condições para viver substancialmente melhor que os nossos avós, razão pela qual saíram de casa cedo e nos deram a nós uma infância melhor que a que eles tiveram.
Daí para cá, a minha geração cresceu e foi encaminhada para a licenciatura já de mestrado encomendado, com a convicção de que a educação formal até nos melhora, mas já não nos assegura nada. Os que de nós entraram no mercado de trabalho, fizeram-no ainda à sombra da crise da Zona Euro e do memorando da troika: em 2013, ano em que terminei a licenciatura, a taxa de desemprego para a minha faixa etária atingiu os 38,1%.
Sou da geração mais qualificada de sempre a entrar no mercado de trabalho, mas o nosso rendimento médio mensal líquido encolheu, em termos reais, de 794 euros (2008) para 757 euros (2017), o preço de uma renda simpática em Lisboa. O que já era curto encurtou. A promessa de que viveríamos melhor que os nossos pais esfumou-se ainda antes de termos acreditado nela.
Quarenta por cento da minha geração vive com os pais. Apenas 24% tem casa própria. Os jornais falam no co-living e na sharing economy e dizem que privilegiamos a partilha à propriedade, porque não têm tempo para explicar porque é que não temos dinheiro para comprar casa ou, muitas vezes, sequer para pagar renda na cidade. A minha geração convenceu-se de que até quer esse inevitável: fica assim mais fácil de o aceitar. Interiorizamos tudo. É a competitividade e a eficiência, é o “dar tudo”, é o “preciso ganhar experiência”, é o “comer o pão que o diabo amassou”, é o upskilling e o upgrading e o personal branding e o influencing.
Em países com mais poupança e rendimentos que os nossos, estima-se que a minha geração demore mais de quatro anos a recuperar cada seis meses sem rendimento. Desde o início da pandemia, um em seis de nós perdeu o emprego. Esta geração, que arranca a carreira aos 23 com estágios não remunerados e trabalhos precários, que sai de casa dos pais aos 29, que é a mais qualificada de sempre mas ganha menos que a anterior, vai ter quase 40 anos quando lhe assentar o pó da crise pandémica.
Entretanto, construiremos as famílias que conseguirmos, com a ajuda dos pais nas contas e nas responsabilidades. Vamos olhar para a idade da reforma – que continuará a deslizar, com o aumento da esperança média de vida, até os 70 – e vamos lembrar-nos do que já sabemos hoje: que o nosso sistema de pensões é insustentável, que a maioria dos nossos políticos tem medo de tocar no assunto porque é uma conversa impopular, e que a solução passará, daqui por uns anos, quando já não der mesmo para adiar mais, pelo aumento das nossas contribuições, pela diminuição (relativa) do valor das pensões e por um prolongamento da carreira contributiva.
Um inquérito da Gulbenkian revelou que os decisores políticos estão conscientes da grave injustiça intergeracional das políticas que tomam, mas justificam-no com a “inexistência de incentivos políticos para agir” (página 21). Isto é uma justificação que não surpreende ninguém, mas que é verdadeiramente escabrosa quando lida e relida. É esta a nossa realidade actual: a do incumprimento propositado do contrato social entre a geração que governa e a geração futura, a troco de ganhos eleitorais imediatos, com a consciência plena da injustiça dessa troca e do sacrifício que acarreta. “Eles que se desenrasquem”.
Permeando tudo isto, a taxa de suicídio nos jovens, sobretudo rapazes, vem aumentando assustadoramente (48% em Portugal face ao ano anterior; nos EUA, o aumento nos últimos anos cifra-se nos 57,4%), assim como o crescimento alarmante de casos de automutilação, sobretudo em raparigas. São os efeitos secundários de sermos a primeira geração – de muitas que nos seguirão – a crescer num estado permanente de exposição, motivados por uma vontade que tem já tanto de própria como de alheia (vejam The Social Dilemma, no Netflix, porque vale a pena).
Em paralelo – e dito assim como se fosse pouco, quando na verdade é quase tudo – as calotas polares derretem, o nível da água do mar sobe, as vagas de calor e os incêndios colherão as vidas que as secas ou as cheias deixarem de levar. O aquecimento global seria mais um problema para a minha geração resolver, não fosse dar-se o caso de já estarmos para além do ponto em que há solução.
Somos o sonho molhado de qualquer populista. Somos uma geração em permanente dívida, estruturalmente condenada a não atingir os níveis de vida dos pais, assustada com a perspectiva de catástrofes naturais iminentes, com uma saúde mental à beira do colapso, a quem foi prometido um paraíso da democracia, dos direitos fundamentais, da justiça e da igualdade de oportunidades que não existe.
Já consigo ouvir uns quantos a dizer que só nos sabemos queixar. É bem possível: temos de começar por algum lado e falar sobre isto é um bom princípio.
Este problema é da minha geração, e da geração dos meus filhos, e das que virão depois dessas. Temos uma responsabilidade acrescida por nos ter calhado na sorte da história o protagonismo desta encruzilhada. Temos de votar, temos de aparecer, temos de nos envolver mais e temos sobretudo de lutar activamente pelas instituições que queremos preservar e pelos valores que queremos representar enquanto sociedade.
Mas também é um problema das gerações que nos precederam e que continuam a governar-nos, a dominar os meios de comunicação social em colunas de opinião, painéis de debate e tribunas ao domingo, a liderar as grandes empresas, a tomar as grandes decisões. Vocês têm as mãos no volante – coladas, diria, ao fim de tantos anos.
Este problema também é vosso. Nós somos os vossos filhos e os vossos netos. Seremos, amanhã, os pagadores das pensões, os cuidadores dos idosos. Amanhã, será esta geração despedaçada a redefinir o conceito de democracia.
Quero que me caiba a esperança entre parágrafos tão negros. Somos a geração mais verde e mais educada de sempre. A geração com menos desigualdade entre homens e mulheres, mais aberta aos outros, mais global e consciente de como as estruturas de poder originam situações sistémicas de discriminação.
Somos uma excelente geração, menos mal equipada que as anteriores para lidar com os desafios que a história nos reservou. Mas não podemos adiar mais a conversa sobre estes problemas, sobre as suas possíveis soluções. Não vamos conseguir desenrascar soluções pontuais para problemas estruturais para o resto das nossas vidas. Temos de encontrar espaço, entre os orçamentos, a pandemia, o futebol, as quezílias partidárias e o escândalo da semana, para discutir a grande guerra que a minha geração já trava, e continuará a travar nas próximas duas décadas.
Esta conversa tem de ser feita connosco, e com quem virá depois. O mundo de amanhã tem de se preparar hoje, com quem vai viver nele. Não faltam “incentivos políticos”. Tem é faltado vontade e coragem para ter uma conversa muito desagradável para muita gente.