Ainda a propósito da StayAway Covid
Não se espere que a app seja miraculosa, mas não se demonize algo que pode ter efeito positivo. E sim, seria um enorme erro pensar em torná-la obrigatória.
A minha afiliação e o meu percurso no INESC não me colocam numa posição de independência para falar da app StayAway Covid; contudo, vou correr o risco e procurar falar de factos.
Esta app não é, definitivamente, uma panaceia universal. O que pretende dar é, de forma automática e impessoal, informação aos seus utilizadores que tiveram um contacto recente, prolongado e próximo, com alguém infetado que os pode levar, se quiserem, a verificar o seu próprio estado e a ter as precauções adequadas. Nada diferente, na essência, do que hoje se faz quando se pede a alguém em quem se detetou a doença que diga com quem esteve recentemente em condições consideradas de algum risco, e se procura contactar essas pessoas e informá-las desse contacto. Este processo é difícil, moroso, e não garante qualquer privacidade: vai-se saber quem são as pessoas a contactar e ter acesso ao seu telefone, como única maneira de as poder informar. Aqui, a confidencialidade garantida pela app é claramente superior. E há casos em que a app resolve coisas que, de outra maneira, não seriam resolúveis.
Pensemos no caso recente do conselheiro de Estado que informou que apanhou o vírus. Como resultado, todos os outros conselheiros fizeram o teste e os que estiveram mais próximos dele ficaram confinados. Isto é fácil porque é tudo gente com notoriedade e em circunstâncias com grande cobertura mediática. Mas admitamos que esse mesmo conselheiro andou de metro num percurso de mais de 15 minutos, cheio de gente à volta que, eventualmente, não o conhece. Ninguém os preveniu, nem ele sabe quem eles são; mas se tivessem a app, eles poderiam ser levados a fazer o teste e ter os mesmos cuidados que se pediram aos conselheiros confinados.
Todos os medos que, contudo, estas aplicações informáticas geram têm uma origem perfeitamente real. Todos sabemos a história da Cambridge Analytica e todos sabemos como as redes sociais têm sido usadas para fins tenebrosos de modo quase incontrolável. O medo da permanente invasão da nossa privacidade através destes meios tem bons motivos. Quantos de nós não receberam publicidade a viagens, depois de termos trocado uns emails a discutir onde estávamos a pensar ir nas próximas férias! Pois é, mas, mesmo assim, deve haver bem mais gente que usa o Gmail do que a app.
Uma das dúvidas que vi serem expressas foi que, apesar de o software da app estar público e poder ser verificado (quanto, nomeadamente, à não existência de alçapões), o que lhe está informaticamente por baixo, desenvolvido pela Apple e pela Google, não é verificável. Isso é mesmo assim. Só que é assim para todas as outras aplicações que usamos e para o próprio uso do nosso telemóvel. Não é especial da app e não é ela que o torna viável.
Outra dúvida, de natureza diversa, é quanto à eficácia de algo cuja utilização é apenas ligeiramente superior a 20% da população. Algo que tem sido repetido é que a probabilidade de contacto entre duas pessoas com a app carregada é de cerca de 20% ao quadrado, ou seja, cerca de 4%. Contudo, a probabilidade de um estudante da Universidade do Minho se cruzar com um pastor alentejano não será muito significativa! Mas se todos os estudantes universitários tivessem a aplicação, dado o intenso e longo convívio entre si, nas aulas, mas sobretudo nos bares e corredores, ou nas residências universitárias, daria um ímpeto importante à utilidade da app. E isto, não obstante o número total de estudantes ser bem inferior a 10% da população portuguesa.
Finalmente, os argumentos contra oscilam entre dizer que são tão poucos os que usam a app que esta não serve para nada, mas que, em contrapartida, se fossem muitos, saturaria completamente o sistema. E se não forem demasiadamente poucos, nem de mais, como é o mais provável que aconteça? Não será uma ajuda a detetar casos de risco? Quando, em todo o mundo, o que se pretende é aumentar o número de testes, não será preferível que os pedidos sejam feitos por alguém cujo prévio contacto aumenta, ainda que ligeiramente, a probabilidade de ser positivo?
E, claro, nada disto deve dispensar os rastreadores humanos que, além do mais, podem fazer algo que a app não faz, que é procurar identificar quem, a montante, foi o causador da infeção.
Em resumo, ninguém espera que a app seja miraculosa, mas parece-me sem grande sentido demonizar algo que pode ter efeito positivo e que, no contexto em que vivemos, sujeitos a riscos diversos e, por vezes, graves, vindos do uso de equipamento e software que não controlamos e dos quais, justificadamente, suspeitamos, é apesar de tudo bem menos perigosa, dadas as suas caraterísticas objetivas que, insisto, podem ser verificadas a partir da análise do programa que lhe dá suporte e cujo código fonte é público. E, na tremenda crise com que nos confrontamos, qualquer ajuda, ainda que pequena, é bem-vinda.
E, finalmente, apesar de tudo o que disse acima, seria um enorme disparate pensar em torná-la obrigatória.
Prof. Emérito da U.Porto, director do INESC e consultor do presidente do INESC TEC
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico