Queremos mesmo brincar com os direitos fundamentais?
Caso o Governo pretenda impor outras limitações aos direitos fundamentais, apenas terá uma solução: solicitar ao Presidente da República que decrete o estado de emergência.
Antes de tecer qualquer comentário, quero deixar bem claro que devemos adotar todas as medidas possíveis para combater a pandemia, devemos seguir as recomendações da OMS, DGS, Ministério da Saúde e médicos de saúde pública. Por isso, qualquer interpretação das palavras que se seguem que levem a pensar que entendo que devemos descurar nas medidas a adotar para combater o Sars-CoV-2 será uma interpretação abusiva.
Por outro lado, a opinião que emito tem apenas por base a nossa Constituição e demais legislação, é apartidária e tem apenas como fito explicar a situação legal das decisões tomadas pelo Estado no que toca ao combate à pandemia e sem qualquer incentivo ao uso da litigância.
Desde o início da pandemia que os órgãos políticos têm adotado um leque variado de legislação que tenta dar cobertura às decisões tomadas que afetam o nosso dia a dia.
Se, no início, a coberto da declaração do estado de emergência, muitas das medidas adotadas tinham cobertura legal e constitucional, a partir do momento em que cessou o estado de emergência, muitas medidas propostas (ou adotadas) padecem de ilegalidade ou inconstitucionalidade.
Com o estado de emergência, previsto no artigo 19.º da Constituição da República Portuguesa, sendo uma situação excecional, está aberta a porta para a limitação de direitos fundamentais. Contudo, essa limitação dos direitos fundamentais, do ponto de vista jurídico, é legitima, desde que se verifiquem os requisitos estabelecidos no artigo 19.º da nossa Constituição.
Assim, a coberto do estado de emergência, dificilmente poderíamos colocar em causa as decisões tomadas, bem como a legislação adotada para este período específico.
Por seu turno, em momento algum poderemos confundir a declaração do estado de emergência com a declaração de alerta, declaração de contingência ou declaração de calamidade.
Desde logo, o estado de emergência está previsto na Constituição, enquanto que as declarações de alerta, contingência e de calamidade estão reguladas na lei de bases da proteção civil. Por aqui verificamos de imediato a importância que uma tem em detrimento das outras.
Por outro lado, com o estado de emergência, como referi, poderá haver uma limitação legitima de alguns direitos fundamentais; com a declaração de alerta, contingência ou de calamidade, tais limitações já são mais duvidosas (para não dizer ilegais).
Pegando na declaração de calamidade (a mais grave dentro da lei de bases da proteção civil), na parte que nos interessa, verificamos que o Governo poderá estabelecer a mobilização civil de pessoas, por períodos de tempo determinado, a fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos, a fixação de cercas sanitárias e de segurança e, por fim, a racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade.
Atalhando um pouco caminho, veja-se que, por exemplo, dificilmente se poderá enquadrar a obrigatoriedade do uso da aplicação StayAway Covid nalguma das circunstâncias referidas na declaração de calamidade.
Em bom rigor, caso o Governo pretenda impor outras limitações aos direitos fundamentais, apenas terá uma solução: solicitar ao Presidente da República que decrete o estado de emergência.
Além disso, como curiosidade, verificamos que das poucas vezes que qualquer cidadão teve de recorrer aos tribunais por causa das medidas adotadas em virtude da pandemia, os tribunais deram razão ao cidadão. A título de exemplo, temos os casos de habeas corpus pedidos em Tribunais dos Açores ou um estabelecimento de diversão noturno que pretendia ter o horário de encerramento mais tarde que o estabelecido pelo Governo.
Por estas amostras verificamos que os tribunais, aplicando a lei (principalmente a Constituição), entendem que as medidas adotadas ultrapassam os limites estabelecidos.
Mais importante que isso, temos as eventuais violações dos direitos humanos e direitos constitucionais nalguns lares, como reportou a Ordem dos Advogados e, nessas situações, também poderemos alvitrar a possibilidade de o Estado não ter tomado as medidas que deveria ter adotado para acautelar esses direitos dos cidadãos que são mais desprotegidos.
Apesar de tudo o que referi, enquanto cidadão, entendo os esforços do Governo em encontrar medidas que sejam eficazes para a proteção dos cidadãos, mesmo que isso implique algumas limitações aos seus direitos, liberdades e garantias.
Por outro lado, pelo facto de vivermos uma situação excecional, poderão tais direitos, liberdades e garantias ser limitados se as medidas forem proporcionais, necessárias e adequadas.
Contudo, há limites que não poderão ser ultrapassados. Há limitações ou obrigações que nunca poderão ser impostas.
Se, atualmente, não temos dúvidas que temos um Estado de Direito Democrático, com as instituições do Estado a funcionar na sua plenitude, com uma fiscalização mutua dos seus poderes, não sabemos o dia de amanhã e, muito menos, se quem governa nessa altura terá as mesmas boas intenções que o Governo atual.
Ora, abrir a porta a algumas limitações ou obrigações que violem os direitos fundamentais de cada um de nós poderá ser abrir a porta a que, no futuro, um primeiro ministro mais ditatorial ou mais extremista queira impor outras limitações ou obrigações usando como pretexto razões que nem a própria razão poderá conhecer. Dando um pequeno exemplo, imaginemos, num futuro, um primeiro ministro querer colocar uma cerca ou muro à volta de uma determinada localidade onde vivem pessoas de uma determinada etnia, limitar a circulação dessas pessoas ou a frequência de determinados lugares por essas pessoas, apenas porque a criminalidade praticada por pessoas dessa etnia aumentou. Seria legitima essa limitação? Respondo claramente que não.
O Estado deve usar todas as ferramentas que tem à mão para combater a pandemia, mas em momento algum poderá colocar em causa o Estado de Direito Democrático em que vivemos ou a nossa Constituição.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico