Joana Barrios: “O impacto ambiental desassossega-me porque cresci na natureza e sou mãe de duas crianças”
Apresentou Armário na RTP2, considerado o Melhor Programa de Entretenimento pela Sociedade Portuguesa de Autores. As artes performativas fazem parte do seu ADN e a cozinha é a sua maior aliada.
Tornou-se presença assídua na ModaLisboa, tanto como oradora como moderadora e, no espaço de dois anos, foi a apresentadora de Armário, uma série de documentários dedicado ao mesmo tema, na RTP2. No sábado passado, 11 de Outubro, a actriz, figurinista e também blogger foi distinguida com o prémio Melhor Programa de Entretenimento em televisão, com aquele programa, do qual é co-autora, nos prémios Autores 2020, promovido pela Sociedade Portuguesa de Autores.
Joana Barrios nasceu no Alentejo, em Santiago do Escoural. O fascínio pelas artes performativas levou-a a ingressar na Escola Superior de Teatro e Cinema, na Amadora. Foi na escola, em pequena, que ganhou o gosto pelo teatro; assim como foi em casa, em pequena, que abria o baú da mãe e escolhia roupas antigas para vestir. Outras preocupações antigas, mas tão em voga nos dias que correm, são a pegada ambiental e o desperdício alimentar.
De origem espanhola, Barrios é o apelido da avó, conta ao PÚBLICO, no Jardim da Estrela, em Lisboa. A sua carreira tem abraçado muitas áreas, incluindo a cozinha. É autora do livro Nhom Nhom, com receitas para bebés, e vai lançar o segundo título já este mês, O da Joana, tendo já o terceiro pensado. Em breve voltará ao teatro e também aos ecrãs. Desta vez como actriz na série Crónicas dos Bons Malandros, na RTP1.
O prémio que acabou de receber dá-lhe a sensação de dever cumprido?
Naturalmente. Sendo um programa comissariado pela RTP2, há que ter a consciência de que se trata de serviço público. E, sendo premiado, significa que foi bem produzido. O Armário não é apenas da minha autoria. Aliás, ganha forma porque dele também faz parte uma vasta equipa que conta com a Maria João Mayer da produtora Filmes do Tejo, a Joana Cunha Ferreira, o realizador André Godinho e a Rita Rolex. Este é um programa que conta com várias linhas discursivas. Ou seja, não é apenas editado e transmitido aos espectadores na forma oral e visual. Todas as áreas discursivas que complementam aquele programa fazem-me olhar para ele como um produto extremamente rico e complexo. E, cada episódio está dedicado a um determinado tema relacionado com a moda, que foi sempre explorado de uma forma holística, ressalvando e respeitando os vários pontos de vista.
O reconhecimento vai implicar uma maior atenção na produção de Armário, caso haja uma nova temporada?
O cuidado num programa de autores e co-autores é uma coisa que nos atormenta. Isto é, multiplicam-se as preocupações éticas, estéticas e políticas de todos os que fazem parte de Armário. Além de tudo, também sentimos uma responsabilidade. Não sei se é preciso alterar os moldes de como o programa é produzido. Obviamente que gostávamos de ter mais orçamento para investir em mais coisas, principalmente a nível técnico. No entanto, garanto que toda a equipa tem uma cabeça sem limites e cheia de criatividade.
Mas vai ter uma terceira temporada?
Eu gostava muito, mas ainda não sabemos. Julgo que a equipa também anseia por uma nova temporada, uma vez que temos episódios que ficaram por realizar. Quando os seleccionámos, ainda ficámos com muitos temas guardados numa gaveta, e isso deve-se à falta de meios a nível de produção, nomeadamente de mãos humanas que se sintam mais confortáveis com a escrita da narrativa sobre determinados assuntos que gostávamos de abordar.
Este é um programa que prima pela originalidade?
Foi pensado para ser um programa de moda dentro do contexto português. Ou seja, a forma como vivemos a moda no nosso país, contém características únicas. Primeiro, a nossa visão é muito condicionada por uma ideia de mercado global que nós, portugueses, não praticamos na totalidade porque não temos poder de compra. A massa jovem, que é a que consome esses produtos, não tem esse grandioso poder de compra. A nossa economia é esta, com postos de trabalho extremamente precários e com artistas a trabalhar sem grandes garantias. E todas essas dificuldades condicionam a forma como vivemos a moda enquanto fenómeno global.
Quando é que começou a pensar em moda?
Desde criança que comecei a pensar e a olhar para a moda, mais ainda sobre este ponto de vista a nível de conteúdo e não estético. O meu pai comprava-me a revista Time que tinha um suplemento semestral dedicado à moda e ao lifestyle e, aos 12 anos, ofereceu-me uma assinatura de livre acesso aos conteúdos. E, um dos artigos que até hoje tenho bem presente na memória, é sobre uma red-carpet a seguir ao 11 de Setembro, em 2001, em que a Angelina Jolie surge com um vestido cinzento e que foi alvo de uma análise, na revista, que falava sobre a mensagem que um vestido cinzento usado na passadeira vermelha comporta. Desde aí que considero que o valor simbólico das peças é amplamente ultrapassado pelo valor ético associado às peças.
Mais tarde foi para Barcelona estudar Crítica de Cinema e Música Pop, mas continuou ligada à moda.
Trabalhei numa loja vintage, em Barcelona, onde se atribuía mais importância às peças de roupa, mais até do que à tendência, à peça-chave ou à cor da estação. Em Portugal, este mercado é bastante recente, porque temos um passado social e económico que nos afasta muito da ideia de comprar em segunda mão. Por exemplo, se há 15 anos partilhasse com a minha avó que o casaco bonito que ela está a ver é de segunda mão, acredito que a primeira reacção seria negativa. Culturalmente, temos esta reminiscência de pobreza. Isto é, na possibilidade de se adquirir algo novo a um custo mais acessível, há ainda o estigma de fugir dessa hipótese porque sentimo-nos muito tentados à compra de algo nunca antes usado por ninguém. E aqui falamos de questões de sustentabilidade que me atormentam desde que sou criança.
Tenho memórias, mesmo em criança, muito claras sobre o uso da roupa em segunda mão. Usava as peças que estavam no baú da minha mãe porque, para mim, tinha todas as vantagens ao contrário de uma peça nova. Na minha perspectiva, a própria história dá mais valor à peça de roupa, o que naquela altura me diferenciava das pessoas. Se eu tinha a oportunidade de escolher coisas que não eram conformes, sobretudo vestuário que era herdado e oferecido, não me cansava de usar.
Era a Joana que decidia o que vestir?
Desde pequena que sempre fui independente e livre na escolha da roupa e, algumas das vezes, escolhia vestuário de homem. Lembro-me de um conjunto que a minha mãe adorava que eu vestisse: umas calças de linho de cor mostarda com uma camisa bordeaux e padrão com malmequeres, que para mim era um pânico. Quando o vestia, sabia que o dia ia correr mal. E, apesar de o amarelo ser hoje uma das minhas cores preferidas, os tons da roupa afectavam-me. Recordo-me, ainda, de peças que eu desenhava porque tinha a fantasia da moda. Aliado a isso, adoptei o gosto pela costura, graças a uma costureira que tomava conta de mim quando eu era criança. E não é que há dois anos a minha mãe recuperou Barbies com roupas costuradas por mim e deu aos meus filhos?
Saiu da aldeia, mudou-se para Lisboa, viveu fora de Portugal, sente que Santiago do Escoural era pequeno para as suas ambições?
Não. O Alentejo é enorme, tem uma planície incrível. A minha mudança não tem que ver com a minha aldeia não ter espaço para as minhas ambições, até porque um dos meus maiores sonhos é regressar. A questão é que Portugal é bastante centralizado nas oportunidades profissionais, contudo a pandemia veio alterar um pouco este paradigma, com o trabalho remoto. A minha profissão é de grande exposição, desde o teatro aos programas de televisão, que não dispensam da minha presença em Lisboa.
O que é que as grandes cidades têm que o Alentejo não tem?
Tudo. Para já, o ritmo de vida é diferente. Obviamente que também se tem um dia-a-dia alucinante no campo, mas é diferente. É mais tranquilo, o barulho é praticamente inexistente e a presença das pessoas também não é igual. Mas é fora das grandes cidades que nos apercebemos que o meio ambiente se está a degradar e que a paisagem rural está a sofrer as consequências.
O impacto ambiental desassossega-me porque cresci na natureza e sou mãe de duas crianças. Quando deixo de ir ao meu Alentejo — mediado por uma auto-estrada e cercado com a vedação da quinta dos meus pais —, atento à falta de cuidado na colocação de pesticidas nos terrenos, sem um equipamento de protecção. Às vezes, dou por mim a questionar-me se o campo é assim tão diferente da cidade relativamente à pegada ambiental, isto é, no que diz respeito ao que estamos a retirar ao solo depois de um cultivo intensivo.
Estudou representação e dançou em Barcelona, trabalhou em teatro em Paris, foi porteira de uma discoteca em Lisboa, é actriz, apresentadora, autora de um blogue... O que lhe falta fazer?
Tantas coisas! Falta-me ter a minha horta, aprender a fazer surf para, um dia, acompanhar o meu marido, que é fotógrafo dessa modalidade. Gostava de aprender música e de tocar guitarra. Temos uma vida pela frente que dá tempo para fazer muitas outras coisas.
Quando é que surgiu a cozinha na sua vida?
Desde sempre. Em 1998, o meu pai, que era advogado de profissão, trespassou um restaurante em Montemor-o-Novo. E, eu, depois da escola ia para o restaurante aprender a cozinhar. Então, desde essa altura que sempre tive uma noção que fui aperfeiçoando.
Quais são os pratos que maior prazer lhe dão confeccionar?
Todos os que façam os meus filhos felizes e que os levem a repetirem. Dá-me bastante gosto cozinhar esparguete à bolonhesa, até porque sou eu quem faz a massa, o que é incrível porque requer o seu tempo para ser confeccionada. Por isso, os meus filhos questionam-me se no dia seguinte podem repetir. Sinto um enorme prazer quando eles me pedem para cozinhar caldeirada de bacalhau, sopas de peixe, migas ou até mesmo um cozido, até porque lá em casa a comida processada é uma excepção à regra da alimentação.
Como foi a adaptação durante o confinamento?
Eu e o meu marido escolhemos uma casa onde pudéssemos ter espaço para trabalhar. Isto porque, desde sempre que trabalhamos muito em casa, o que é agora uma realidade absolutamente nova para muitas das pessoas. Mesmo sendo mãe, [durante o confinamento] soube como gerir os horários de trabalho: faço muitas horas extraordinárias, madrugada fora, para respeitar o sagrado espaço da casa que também é dos meus filhos e que são o mais importante de tudo. Durante a pandemia, depois de eles se deitarem, acendia o computador, respondia aos e-mails e escrevia o que tinha de escrever. Dantes, acordava muito cedo para o fazer, com o confinamento evitei fazê-lo para não os acordar. Foi uma adaptação que não foi dramática. Para nós, o estranho foi a falta de sair de casa para ir brincar ao jardim ou conviver com os amigos.
O que é que vai fazer a seguir?
O meu segundo livro de receitas, O Da Joana, sai no próximo dia 27. Na confecção dos pratos, para as sessões fotográficas, garanti que não houvesse desperdício alimentar. Num mundo altamente assimétrico e em que se passa tanta fome, eu sentir-me-ia muito mal com a minha consciência se tivesse desperdiçado. E já estou a pensar no terceiro. O que desejo com esta minha incursão performativa, principalmente no universo da culinária, é que as pessoas reclamem o espaço da cozinha com liberdade, expressão, poupança e aumento da qualidade de vida. Para mim, cozinhar é um superpoder do quotidiano, porque faz-me proporcionar uma refeição muito boa à minha família. Em breve, e levanto um pouco o véu, vou ter um espectáculo no Teatro Maria Matos, em Lisboa, e mais não posso contar. Como actriz, vou estrear-me na série Crónica dos bons malandros, na RTP1, com a realização do Jorge Paixão da Costa, que deve estar prestes a estrear. E é tudo. É muito ou pouco? (risos)
Texto editado por Bárbara Wong
Entrevista corrigida dia 20/10/2020, às 9h. Embora tenha feito uma pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop, a entrevistada não estudou música. Relativamente ao programa Armário não há episódios por editar mas por realizar, com temas que ficaram por abordar. As nossas desculpas à entrevistada e aos leitores.