“Eu só queria ter uma família normal”
Estamos a permitir que estas crianças cresçam com a ideia de que não têm o direito a ter por perto ambos os pais. Que cresçam com a percepção de que têm uma família anormal… Que isto nos faça reflectir.
A frase pertence a um menino de nove anos, cujos pais guerreiam em tribunal desde o dia em que nasceu. Não conhece outra realidade senão a do conflito, das agressões, das ofensas e das privações. Falamos de um menino vítima do conflito parental.
A decisão do Parlamento da República sobre a forma como ficará definida a possibilidade de um regime de residência alternada já é conhecida por todos nós. Em bom rigor, nada muda, na medida em que a divisão do tempo de convívio da criança com ambos os pais de uma forma relativamente equitativa (não tem de ser uma divisão de 50%-50%) já é possível com a actual legislação. O que equivale a dizer que, para muitas e muitas crianças, o calvário dos conflitos parentais e da guerra de poder irá manter-se. Uma guerra associada à presunção (errada e sem fundamentação empírica) de que a mãe é, regra geral, a melhor cuidadora das crianças e de que o pai deve ocupar apenas uma posição de segunda.
Os argumentos que justificam a importância de a criança poder conviver com ambos os pais de uma forma regular foram já explanados anteriormente, pelo que iremos agora debruçar-nos sobre o impacto que tem na criança o facto de apenas conviver pontualmente com um dos pais, seja ele a mãe ou o pai.
Quando uma criança nasce, precisa desesperadamente de alguém que dela cuide, sendo que a presença contínua e disponível de adultos que lhe prestam cuidados e asseguram a satisfação de todas as suas necessidades é imprescindível para a sua sobrevivência. Será com estes adultos presentes e cuidadores que a criança irá estabelecer uma relação de vinculação, segura se falarmos de cuidadores disponíveis e consistentes que cuidam e protegem das adversidades.
Ora, para que esta relação de vinculação segura seja estabelecida é fundamental que os adultos convivam regularmente com a criança e tenham ainda a oportunidade de assegurar os seus cuidados em diferentes contextos funcionais. Dar a papa, o banho, brincar, adormecer, consolar perante uma situação de angústia ou de medo… algo que apenas é possível com um convívio regular e extenso. Ou, dito de outra forma, que não é compatível com meras visitas em fins-de-semana alternados. Aliás, o termo “visitas” deveria ser abolido, de tão horrível que é neste contexto. Então, mas as crianças visitam os pais?
Ao crescer num contexto de conflito e de guerra, visitando um dos pais de forma esporádica, a criança acaba por desenvolver-se num clima de instabilidade, insegurança e imprevisibilidade. As figuras parentais não representam, afinal, qualquer segurança. Transmitem, isso sim, medo, ansiedade, angústia… potenciando sinais e sintomas diversos. Não é por acaso que muitas e muitas destas crianças apresentam sintomas depressivos, de ansiedade, alterações no sono, nos padrões alimentares, no rendimento escolar e na forma como se relacionam com os outros. Experienciam ainda sentimentos de abandono em relação ao progenitor não residente que, naturalmente, evidencia menor envolvimento parental.
Por isso, pergunto aos pais autocentrados, egoístas e preocupados apenas em atingir o outro progenitor e que, para tal, instrumentalizam os filhos… sabiam que as crianças crescem? Sabiam que as dificuldades que hoje vivenciam podem cristalizar-se e originar outro tipo de problemas? Sabiam que, ao crescer, adquirem também maior maturidade e capacidade de análise crítica, podendo mesmo questionar quem os manipulou e sugestionou?
Pois é…
Este menino de nove anos dizia que só queria ter uma família normal. “E o que é uma família normal para ti?”, perguntei-lhe. “Ter uma família normal era não ter de falar contigo nem com o tribunal. Era poder estar com a mãe e com o pai sem problemas. Gosto dos dois, queria estar com os dois…”
Estamos a permitir que estas crianças cresçam com a ideia de que não têm o direito a ter por perto ambos os pais. Que cresçam com a percepção de que têm uma família anormal… Que isto nos faça reflectir.