O Rei Trump
Duas obras que fornecem importantes pistas para entender a espantosa figura de Donald Trump e como ele veio a ser eleito o 45.º Presidente dos Estados Unidos da América.
Da quantidade de livros, artigos, podcasts e documentários que compõem a área multidisciplinar dos estudos trumpológicos, destacam-se duas obras de invulgar perspicácia e abrangência, ambas de 2016: Hypernormalisation, de Adam Curtis, e Trump, The Greatest Show on Earth, de Wayne Barrett.
A primeira é um retrato cáustico do “maelstrom” mundial espoletado pelo que o documentalista inglês descreve como a devastadora usurpação pela alta finança das actividades e funções próprias da acção política, no contexto da mundialização neoliberal. A segunda é um aturado estudo biográfico da família Trump, incidindo sobre os paralelos e contrastes entre a evolução do pai Fred e a do filho Donald. Tomadas em conjunto, as duas obras – um longo documentário de mais de duas horas e um livro de 525 páginas – fornecem boas pistas para entender a espantosa figura de Donald Trump e como ele veio a ser eleito o 45.º Presidente dos Estados Unidos da América.
As duas obras revelam como é intelectualmente redutor retratá-lo seja como simples sobressalto extemporâneo na vida política norte-americana ou como manifestação proto-hitleriana dos fantasmas do nativismo, racismo e isolacionismo, e anunciador de futuros perigos cataclísmicos. Demonizá-lo poderá oferecer conforto psicológico e sentido de missão a quem vê na sua figura moralmente desprezível o íman de forças anti-liberais, xenófobas, ultra-conservadoras que urge combater, em nome da dignidade humana e de uma inabalável crença no progresso social. Mas o risco que corre quem o faz é perder de vista a magnitude do facto histórico de ele ocupar a sala oval da Casa Branca e, daí, lançar o caos fazendo descarrilar ordens estabelecidas, invertendo normas e valores, alterando, como um tufão, o curso esperado da história, mentindo, enganando, deturpando, desesperando, vitimizando.
Apesar das óbvias diferenças de personalidade e percurso, Donald Trump é como o seu pai um homem que floresceu e prosperou no insanável lodaçal da corrupção nova-iorquina, onde os tentáculos da criminalidade organizada abraçavam (e abraçam) os da política partidária, do aparelho judicial, do mundo empresarial e das instituições financeiras. Wayne Barrett, o falecido jornalista de investigação do Village Voice, desfia um extraordinário rosário de íntimas ligações dos Trump às máfias alemãs, italianas e judias, aos conglomerados impessoais, aos exércitos de advogados, às administrações públicas e ao enxame de ambições políticas que assolam a sociedade norte-americana. O não menos extraordinário rosário de transformações ideológicas e de progressivo descontrolo político e económico mundial a que Bill Clinton presidiu é a matéria do documentário de Adam Curtis. Juntos, dão-nos a ver um Trump simultaneamente mais humano e mais epopeico.
Um Trump mimado, temerário, frenético, cruel, vingativo, aldrabão, ganancioso e mesquinho. Mas também mais transcendente, e que não queremos reconhecer: a personificação monstruosa de tropos mitológicos cuja função é obrigar-nos a olhar ao espelho para ver o que não queremos ser, o horror ilógico que está em nós. Donald Trump, o ser híbrido onde a pessoa, o actor e o pesadelo se confundem, ocupa no ritual mediático em que estamos inelutavelmente submergidos a figura do personagem mítico do “trickster”, o enganador cuja energia criativa produz novos sentidos e dá a conhecer novas realidades. Improvável congregação do anão Rumpelstiltskin, do gigante Pantagruel e do eterno mestre Woland, Trump encarna num arrepiante registo kitsch a imagem do mundo ao contrário, o absurdo deleuziano que desmonta as ilusões do sentido. Da imensa galeria de “tricksters” fantasiados ao longo dos séculos pela literatura mundial, talvez nenhum assente melhor a Donald Trump do que a criação de Alfred Jarry: a do hediondo Rei Ubu. Confrontados com o teatro surreal em que ele tem imperado, somos como o revoltado público parisiense da noite de estreia da peça de Jarry, em 1896: atiramos-lhe “memes” à cara sem perceber que a anedota somos nós, as nossas expectativas utópicas e os nossos medos apocalípticos.