Sobre a censura a Bernardo Santareno no seu centenário
A Câmara Municipal de Santarém e a vereadora da Cultura precisam de ser lembradas de que os artistas não se regem pelo “gosto” dos órgãos de poder. Regem-se pela liberdade.
Bernardo Santareno, considerado por muitos o maior dramaturgo português do século XX, nasceu a 19 de Novembro de 1920, em Santarém. Faria cem anos em 2020 e por isso Fernanda Lapa e a Escola de Mulheres tiveram a iniciativa de comemorar o seu centenário, que arrancou com um colóquio e uma exposição na Fundação Calouste Gulbenkian a 18 de Janeiro de 2020. Devido ao ano difícil que atravessamos, muitas das iniciativas previstas por todo o país para a comemoração do centenário acabaram por ser canceladas. Apesar disso, outras avançaram, de que é exemplo, em Santarém, a terceira edição do Pictorin – Encontro Internacional de Artistas Plásticos, este ano dedicado à memória de Bernardo Santareno, que decorreu em inícios de Setembro.
Uma das propostas do Pictorin passava pela pintura de um mural de homenagem ao dramaturgo português, inicialmente previsto para a rotunda Madre Andaluz, às portas da cidade de Santarém, para que fosse visível e público. A proposta de pintura do mural foi encaminhada para a Câmara Municipal de Santarém (CMS), que também integra as comemorações do centenário do escritor. Seria da autoria do pintor João Domingos, representando Bernardo Santareno ao leme, em evocação à sua obra Nos Mares do Fim do Mundo, mas também à sua vida, tendo em conta que, pela sua actividade como médico, o escritor esteve diversas vezes embarcado. Para acompanhar a pintura, João Domingos escolheu a frase “Lutem para que o fascismo não torne a acontecer neste país”, da autoria de Bernardo Santareno. A resposta da Câmara à proposta do Pictorin foi comunicada apenas na véspera da realização do mural, pela vereadora da Cultura, Inês Barroso, que não autorizou a realização da intervenção artística, justificando-se publicamente dizendo que a CMS “não gostou”, apesar de estar receptiva a outras propostas, como noticiaram os jornais regionais Mais Ribatejo e Correio do Ribatejo.
O caso do “gosto” da CMS não é novo. O PÚBLICO noticiou em 2018 o caso da peça em cena no Teatro Sá da Bandeira, em Santarém, que foi retirada dos palcos porque não foi do agrado de alguns munícipes e da própria vereadora da Cultura. Parece irreal, vindo de um outro tempo, mas aconteceu. E continua a acontecer, como agora com o mural de Bernardo Santareno. Não estamos no mundo encantado de Alice no País das Maravilhas, em que presidentes camarários ou vereadores, quais Rainhas de Copas, têm o poder para cortar as cabeças de quem diz ou faz o que não lhes agrada. Mas neste nosso mundo, há decisões e opiniões que guilhotinam a criação cultural e o pensamento livre. E isso não pode acontecer.
A Câmara Municipal de Santarém e a vereadora da Cultura precisam de ser lembradas de que os artistas não se regem pelo “gosto” dos órgãos de poder. Regem-se pela liberdade. E qualquer tentativa de anulação dessa liberdade, seja através de uma peça retirada de cena, seja através da não-autorização da pintura de um mural – integrado num encontro internacional de artistas com agendas para cumprir –, precisamente na véspera da sua realização, soa a censura. Isso é intolerável vindo de uma entidade pública que integra as comemorações do centenário de Bernardo Santareno. Para homenagear um escritor, um dramaturgo, um resistente antifascista, evocam-se todas as suas palavras, todo o seu legado, e não apenas o que é do “gosto” das entidades que o homenageiam. Censura foi o que Bernardo Santareno enfrentou em vida, é ultrajante à sua memória que volte a enfrentá-la em morte.
A organização do Pictorin acabou por ter de avançar com o mural numa parede das instalações da Escola Superior de Educação de Santarém e, dias depois, a parede onde inicialmente estava prevista a realização da pintura apareceu grafitada anonimamente com a frase de Bernardo Santareno “Lutem para que o fascismo não torne a acontecer neste país”. Depois de muita polémica, o presidente da Câmara Municipal de Santarém, Ricardo Gonçalves, decidiu publicar nas suas redes sociais uma foto manipulada em que a frase grafitada de Bernardo Santareno aparece adulterada, lendo-se “Lutem para que o fascismo e comunismo não torne a acontecer neste país”, como fez saber o jornal Mais Ribatejo.
Não sei se o presidente da Câmara Municipal de Santarém e a vereadora da Cultura esqueceram os cargos que ocupam, perdendo a noção dos limites entre as suas opiniões pessoais e a opinião institucional dos órgãos que representam. Sei, sim, que o caminho que a Câmara Municipal de Santarém decidiu seguir, além de ser uma desonestidade para com a História recente de Portugal, desonra a memória do scalabitano Bernardo Santareno, um dos maiores escritores portugueses, e a herança dos Capitães de Abril que da nossa cidade rumaram a Lisboa para nos libertar do fascismo.