Isto não pode ser a América
É recorrente afirmar-se que “a próxima eleição presidencial é a mais importante de sempre” para os EUA. Mas esta é mesmo. John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional, avisou, numa das mais eloquentes críticas ao antigo chefe na Casa Branca: “Quatro anos de Trump na Presidência os americanos ainda aguentam. Oito talvez já não.”
As ditaduras terminam com revoluções e golpes de Estado. As democracias acabam de forma difícil de definir no tempo: primeiro devagar, depois muito rapidamente. As instituições democráticas continuam a funcionar nos EUA. Mas, desde janeiro de 2017, elas têm dado provas constantes de resistência para continuarem a prevalecer, perante um Presidente que pisa os outros poderes, desdenha os procedimentos legais e reduz o espaço das minorias.
Donald Trump mentiu mais de 20 mil vezes desde que entrou na Casa Branca. Mais de mil delas foram sobre o coronavírus. Quase todos os políticos mentem? Certo. Mas não com o descaramento e a quantidade inacreditável do atual Presidente dos EUA. Como é que isso ainda não comprometeu a sua reeleição? Porque a sua base (minoritária no todo da sociedade, mas muito significativa na participação eleitoral) não se importa de consumir essas mentiras – e não as julga enquanto tal.
A base Trump não se move pela verificação do mérito ou da coerência do seu campeão. Para os apoiantes de Trump basta receber a legitimação de ver o seu candidato no poder – e o que isso representa para a perturbação do sistema político, mediático, científico, académico. A imunidade do atual Presidente dos EUA a todo e qualquer escândalo, polémica, contradição ou facto inaceitável em que possa estar envolvido tem a ver com isso: a reação dos seus eleitores não é a de mudar o julgamento em relação ao Presidente, mas a de destruir os argumentos de quem detetou a falha.
A vitória Trump 2016 foi o triunfo de um populismo que prefere recusar as evidências científicas e o bom senso. Que optou pelas crenças sem verificação, movidas pela suposta superioridade de uma “maioria silenciosa”, que assistira, na década anterior, entre a surpresa, a irritação e a raiva, ao crescimento e à afirmação de diversas minorias (raciais, comportamentais, sexuais), durante os dois mandatos de Barack Obama.
O “Make America Great Again” de Trump 2016 era, na verdade, um “Make America White Again”. O triunfo Trump baseou-se na imposição pelo ódio e a divisão de uma espécie de anti-clímax dos anos Obama: esqueçam o “Yes We Can” e o “Bring the Country Together” – a América de Trump acredita no homem providencial que iria rebentar com supostas ingenuidades de reconciliação e imporia a vontade da maioria branca, nativista e supostamente legítima. Os “verdadeiros americanos”.
Esta é também, por isso, uma eleição que coloca em confronto duas visões do que (ainda) é e pode ser a América: aberta ou fechada ao mundo; diversa ou homogénea; globalista ou nacionalista; pelo Acordo de Paris ou a continuar num misto de negacionismo ou exclusão egoísta do combate às alterações climáticas.
Está quase tudo em jogo: a resistência do sistema eleitoral e judicial americano; o futuro do sistema bipartidário, pelo menos do modo que o conhecemos nas últimas décadas.
Sobreviverá o Partido Republicano a Donald Trump, depois de quatro anos de capitulação a uma via populista, protecionista e personalista? O que será melhor para o que resta da direita clássica americana, que prezava os grandes acordos internacionais e reconhecia importância a instituições como a ONU: que venha agora Biden, para repensar um possível “back to basics”, ou um segundo mandato de Trump, para uma reconversão definitiva?
Joe Biden tem jogado pelo seguro: confia na vontade de todo o espaço político à sua esquerda de evitar uma reeleição de Trump, conta com a maioria dos independentes e ainda alguma direita moderada (o que possa ter sobrevivido ao turbilhão populista). Aposta na ideia de recolocar a América numa normalidade decente, retomando o essencial da agenda Obama – mas sem um décimo do carisma e do poder retórico do seu antigo número 1.
A idade avançada (78 anos à data da tomada de posse) não deve ser ignorada para quem poderá iniciar um arco temporal de oito anos na Presidência. Biden devia ter a coragem de se assumir como “Presidente de transição”, de apenas um mandato e com missão patriótica de final de carreira política de mais de meio século: a de devolver à Presidência americana a dignidade que Trump vandalizou. E devia sinalizar que Kamala Harris tem dimensão política e capacidade para assumir, a qualquer momento, o “glorioso fardo” da Presidência.
Martin Amis afirmou ao The Guardian que “mais do que um referendo a Trump, será o caráter da América que irá a referendo”. Não iria tão longe. Os Estados Unidos são e continuarão a ser um grande país. Fundado e afirmado em valores e pressupostos que, em muitas dimensões, lhe conferem uma história única, inspiradora e singular.
Os últimos 12 anos mostraram que na América cabem coligações de vontades e visões do mundo tão diversas que são capazes de eleger para a Presidência duas personalidades tão diferentes e antagónicas como Barack Obama e Donald Trump.
Uma reeleição de Trump seria a avalização de uma presidência divisiva, que toma decisões em relação aos estados atendendo à cor política dos governadores, que ‘flirta’ com extremistas e faz ‘bully’ aos representantes eleitos e cientistas reputados. Ou já será tarde para acreditar num regresso à normalidade de uma América decente, confiável, que não tenha dúvidas em preferir aliados permanentes e em condenar líderes autoritários?
Biden é favorito mas Trump ainda pode ganhar. E o voto por correspondência (crucial para consumar as atuais vantagens do democrata nos Estados decisivos) tem tudo para dar confusão. Os Estados Unidos em 2020, e depois de quatro anos de uma presidência que em vez de sarar feridas as agrava, são uma sociedade fragmentada e com fortes sinais de desagregação.
Os eleitores americanos votarão em função do que considerarem vir a ser o melhor para as suas vidas nos próximos quatro anos.
Mas terão, no seu direito de voto, um poder muito maior: evitar ou confirmar um caminho potencialmente sem retorno para uma América menos democrática, menos tolerante e com muito menor capacidade de servir de exemplo.
Isto não pode ser a América.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico