Oxigénio versus Hidrogénio, ou a intoxicação cultural dominante
O Estado vai colocar 100 milhões de euros por ano na Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Entretanto, apesar do tão proclamado amor da Esquerda pela Cultura, nesta área não se arrisca o aumento sério de investimento e o desenho de políticas pioneiras.
Estamos nas vésperas da discussão parlamentar do Orçamento do Estado para 2021. A este propósito, pretendo evidenciar o modo como se valoriza excessivamente o investimento nas novas tecnologias em detrimento da aposta na construção pessoal e social que a cultura representa. Aproveito, pelo caminho, para lembrar dados relevantes sobre a despesa pública com Cultura e as promessas a esse respeito.
O Governo aprovou em Maio passado a Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Segundo o PÚBLICO, pretende-se que os projectos relacionados com o hidrogénio sejam capazes de mobilizar, até 2030, investimentos na ordem dos 7000 milhões de euros. Destes, cerca de “900 milhões de euros deverão ser apoios públicos ao investimento e produção”, segundo o ministro do Ambiente e da Acção Climática, João Pedro Matos Fernandes. Ou seja, o Estado vai colocar 100 milhões de euros por ano na Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Orgulhosamente, declara-se que somos o primeiro país a desenvolver uma estratégia nacional para o hidrogénio verde. É, aparentemente, uma boa notícia. Digo aparentemente, porque não estão demonstrados os graus de rentabilidade, a dez ou 20 anos, face aos investimentos necessários. Mas o Governo está disponível a arriscar e a ser pioneiro neste domínio.
Entretanto, apesar do tão proclamado amor da Esquerda pela Cultura, nesta área não se arrisca o aumento sério de investimento e o desenho de políticas pioneiras.
Recordo que o Partido Socialista está no Governo há cinco anos. No Programa de Governo de 2015, era dito que “a assunção da Cultura como fator essencial de inovação, qualificação e competitividade da nossa economia serão aspetos fundamentais da ação do Governo”. E ainda que “Esta prioridade política implica um compromisso de consolidação progressiva, ao longo da legislatura, dos meios orçamentais atribuídos ao setor da Cultura”. Ironicamente, em 2016, o primeiro Orçamento do Estado do Governo socialista tinha um valor mais baixo para a Cultura do que o do ano de 2015, elaborado pelo Governo que tanto criticara!
Saltando quatro anos, e analisando o Programa do atual Governo, de 2019, o mesmo tem propostas que suscitam perplexidade, como a promessa de “Criar o Museu Nacional de Arte Contemporânea, a partir do existente Museu do Chiado”. É que o Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado, foi criado, pela I República, exatamente com este nome… em 1911! Ainda nesta linha, o Governo promete “Implementar a Conta Satélite da Cultura”, assunto no qual a ministra da Cultura, Graça Fonseca, insistiu, a propósito da preparação do Orçamento do Estado de 2020, dizendo que “será aprovada e implementada em 2020 a Conta Satélite da Cultura”. É uma promessa curiosa. É que a Conta Satélite da Cultura foi aprovada e implementada, por minha iniciativa enquanto membro do Governo com a tutela da Cultura, e em articulação com o INE… em 2015!
Prometer fazer o que está feito e sobre isso ninguém dizer nada revela o grau de desatenção do Parlamento, da sociedade civil e da comunicação social, o que é preocupante numa democracia. Poderia dar outros exemplos deste tipo de anunciar o “novo” – desde o Plano Nacional das Artes (um exercício de recauchutagem), ao Museu Nacional da Música ou às obras do Palácio Nacional da Ajuda. Nada custaria ao Governo reconhecer o trabalho feito e dizer que se está a continuar e melhorar o mesmo – é normal assim acontecer na boa governação.
Repare-se na questão orçamental, analisando o Orçamento do Estado de 2020. Se retirarmos do orçamento da Cultura o dinheiro que vai para a RTP – que corresponde a mais de 55% do mesmo (!) –, o montante orçamentado ronda os 278 milhões de euros. Ou seja, o dinheiro disponibilizado pelo Governo para a Cultura não ultrapassa os 0,7% do Orçamento do Estado e está abaixo de 0,4% do PIB. Veja-se os últimos dados do Eurostat relativos a despesa pública na Europa com Cultura (soma da despesa das administrações públicas nacionais, regionais e locais em 2017): Letónia 3%; Estónia e Hungria 2,6%; Malta 2,4%; Lituânia 2%; Polónia e Islândia 1,8%; França 1,2%, Alemanha 0,9%. Na UE, só a Grécia (0,3%) gasta menos com Cultura que Portugal – 0,5%. E se, em plena crise da troika, Portugal, em 2012, gastava 488,9 milhões de euros com Cultura (0,6% da despesa pública), em 2017, gastava 485,7 milhões de euros (0,5% da despesa pública).
Mais: olhando para as séries estatísticas disponíveis, verifica-se que, de 1995 a esta parte, o valor do orçamento da Cultura nunca ultrapassou os 300 milhões de euros. Mas em 2001, 2002 e 2005, os valores dos orçamentos iniciais da Cultura foram superiores ao de 2020! E mesmo nos anos da troika, a média anual do orçamento da Cultura rondou os 250 milhões de euros.
Para cumprir a importante promessa feita no Programa do atual Governo de “Aumentar, de forma progressiva, a despesa do Estado em Cultura, com o objetivo de, no horizonte da legislatura, atingir 2% da despesa discricionária prevista no Orçamento do Estado”, será preciso passar, nos próximos três anos desta legislatura, dos atuais 278 milhões para, aproximadamente, 600 milhões de euros anuais.
Ora isso implica um aumento médio de 100 milhões de euros por ano no Orçamento – o mesmo que se anunciou para a Estratégia Nacional para o Hidrogénio.
A Cultura pode ser o Oxigénio do ecossistema democrático. Ela promove a capacidade criativa e crítica, valoriza a cidadania e a participação, evidencia a pluralidade e estimula a coesão. O desenvolvimento cultural, como Estratégia Nacional, é decisivo para aumentar os graus de qualificação e diminuir as desigualdades sociais – pois estas não se manifestam só na diferença de rendimentos materiais mas também nas diferenças de capital cultural.
Da análise feita da estratégia para o hidrogénio e da inexistente estratégia para o oxigénio em Portugal, bem se percebe a diferença nas políticas culturais. Aqui respira-se, mas poucochinho.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico