Normal People: a série realista do momento que é melhor do que o livro
O segredo em Normal People não é propriamente a linguagem verbal, mas sim a não-verbal, entre as personagens, linguagem que flui claramente melhor do que os diálogos que as conduzem a uma série de mal-entendidos e culminam nas sucessivas separações que nos fazem sofrer junto das personagens e consumir os episódios de 30 minutos desta primeira temporada um após o outro.
Um destes dias, enquanto navegava numa rede social, o feed mostrou-me um post de uma das várias páginas de cinema que gosto de seguir, confrontando-me com uma imagem de Before Sunrise (1995), um dos filmes da famosa trilogia romântica de Richard Linklater que me fez, imediatamente, pensar em Normal People.
No entanto, não foi a imagem de uma cena de Before Sunrise que me prendeu o olhar, mas sim a pergunta que dita a sua legenda e questiona quando voltam aos ecrãs as verdadeiras histórias de amor, ao invés da actual catrefada de filmes de super-heróis que estão por todo o lado.
Entendo que o cinema e a televisão entraram nas nossas vidas não apenas para nos entreter, mas, sobretudo, para espelhar no ecrã a realidade daquilo que vivemos, reflectindo todos os altos e baixos, bem como alguns dos atalhos pelos quais passam as nossas vidas e a nossa existência humana, provocando com isso múltiplas sensações.
A HBO captou, e bem, esta essência de que falo, ao decidir transmitir na sua plataforma de streaming a produção irlandesa da BBC e da Hulu, Normal People, que já é considerada o maior fenómeno televisivo de 2020 pela crítica e está nomeada para uma série de Emmys. A série baseia-se no bestseller de 2018 da escritora irlandesa Sally Rooney, um fenómeno dentro da escrita no seio da geração millennial.
A narrativa conta-nos a história de amor de dois adolescentes de distintas classes sociais que se apaixonam no liceu, acompanhando, a posteriori, os encontros e desencontros ao longo dos anos, nos quais ora estão envolvidos emocionalmente ora estão separados, ora são amigos cúmplices, sendo que em todos estes momentos são duas almas profundamente apaixonadas uma pelo outra.
Parece que o fenómeno literário que deu vida a uma série é mais uma daquelas histórias adolescentes, “pipoquinha” de conteúdo ligeiro, cor-de-rosa e tremendamente irrealista — mas essa não é a realidade.
Por uma vez na vida televisiva e cinematográfica, uma série consegue superar em larga escala o livro, até porque o segredo em Normal People não é propriamente a linguagem verbal, mas sim a não-verbal entre as personagens, linguagem que flui claramente melhor do que os diálogos que as conduzem a uma série de mal-entendidos e culminam nas sucessivas separações que nos fazem sofrer junto das personagens e consumir os episódios de 30 minutos desta primeira temporada um após o outro.
Em Normal People, a má comunicação entre os protagonistas ganha forma e reflecte-nos espirais de dor e angústia, tal como acontece na vida real. Afinal, quem nunca sofreu por não saber comunicar correctamente com os outros o que sentia ou o que estava a viver em determinado momento, gerando mal-entendidos e desconfianças disparatadas?
O cenário cinzento, sombrio e mágico irlandês evidencia uma história cheia de paixão entre duas personagens altamente frágeis e complexas que temos a oportunidade de ver crescer e amadurecer no ecrã, passando por situações nas quais todos nos identificaremos, em maior ou menor grau, em algum momento da série.
Para além desta evidente preocupação de identificação com cenas da esfera do crescimento emocional de qualquer adolescente e da sua passagem para a vida adulta, a série aborda temas que a fazem pertencer a todos nós, mesmo aqueles que nada vislumbram de si mesmos em Connell e Marianne.
Estão igualmente presentes dois dos maiores tabus que ainda persistem na nossa sociedade moderna: o sexo e a morte. O sexo entre as personagens tem tanto de apelativo como de realista, sendo um factor que capta e seduz naturalmente o público em larga escala.
A perfeição televisiva a que estamos habituados foi substituída por sussurros, diálogos curtos, silêncios, olhares vagos e pela busca, por exemplo, do preservativo no meio do acto sexual, bem como por outras peripécias que sabemos serem absolutamente naturais no desenrolar das relações sexuais.
Já o tabu da morte está bem patente através dos caminhos do luto de Connell, revelando-se um importante gatilho emocional para a abordagem dos temas que tornam Normal People tão especial, devastadora e real. A depressão, a ansiedade social, as relações tóxicas e abusivas, a violência doméstica, os falsos amigos, o peso das inseguranças, as dificuldades financeiras, a importância da psicoterapia e de ter amigos como rede de apoio são tudo situações dos nossos quotidianos pelas quais as personagens vão viajar.
E por falar em falsos amigos e de como por vezes nos prendemos a realidades que são confortáveis, mas não passam de uma ilusão perante quem somos na realidade, a série vai mergulhar durante o Verão na sedutora, charmosa e colorida Itália campestre, a mesma que nos prendeu ao ecrã em Call Me By Your Name (2017, Luca Guadagnino).
A título de curiosidade: é possível arrendar, no AirBnb, por 40 euros por noite, a casa de Marianne em Itália. Na vida real pertence à mesma família há 150 anos e chama-se Tenuta di Verzano Il Casale.
O BDSM é igualmente abordado, mas é um enorme erro de casting não só da série bem como da escritora, o que levou esta comunidade a insurgir-se contra a mesma. Neste artigo da Rolling Stone, os entendidos no tema falam nisso mesmo.
A inteligência emocional faz de Normal People a minha série predilecta de 2020 e devo dizer que não foi fácil resistir a enumerar múltiplas frases e cenas desta série que tem tanto para absorver, reflectir e, nostalgicamente, viajar no tempo.