Futuro em debate: uma pandemia racista e assintomática num país não racista

A pandemia racista atingiu igualmente o mundo inteiro, há vários séculos. Prescrevemo-la como constipação já curada e ignorámos os sintomas gripais. Esta tem sido uma pandemia racista, mesmo que cá seja à portuguesa. Mas podemos encontrar a cura...

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Há razões para se falar tanto de racismo durante a pandemia de covid-19. É que ele também é pandémico. A covid-19 afecta de forma diferente cada pessoa. Há quem sinta todos os sintomas e quem esteja assintomático. A racista também. É, por isso, normal que estejamos todos com medo, confusos. Eu estou.

A pandemia racista atingiu igualmente o mundo inteiro, há vários séculos. Prescrevemo-la como constipação já curada e ignorámos os sintomas gripais, até surgirem casos de pneumonia. Vivíamos um confortável estado de desleixo e negação que a covid-19 não só pôs a nu, como, ao tirar o cobertor que restava, piorou. Esta tem sido uma pandemia racista, mesmo que cá seja à portuguesa. Mas também nos piores momentos surge o melhor de nós, e cresce igualmente uma voz mundial de indignação, mais focada e assertiva.

Sou cabo-verdiana, a viver em Portugal desde 2003, mãe de dois filhos portugueses, nascidos com os traços todos de um “branco puro”, e já perdi a conta às vezes que me perguntam se eu sou a babysitter deles. Diariamente, sou relembrada de que a minha cor da pele é o elemento que mais me define.

Existe um racismo estrutural em Portugal, sim. Ele magoa-nos e traz consequências devastadoras para milhares de vidas — especialmente em tempos pandémicos —, pois afecta desde a habitação, a saúde, o trabalho. Leia-se Racismo à Portuguesa, série de reportagens realizadas pelo PÚBLICO.

Warren Buffett, o quinto homem mais rico do planeta, e que a 30 de Agosto completou 90 anos, confessou a Jay Z e à Forbes: “Se eu tivesse nascido negro ou mulher, não tinha tido as oportunidades que me deram.” Outros tempos? Não para aquelas jovens negras que me escrevem a dizer que não vale a pena o esforço que fizeram pelos seus mestrados e doutoramentos, pois nunca vão ter trabalho na sua área.

Somos uma sociedade que incentiva o empreendedorismo. Mas não pensamos na quantidade de talentos que desperdiçamos diariamente com esta corrosiva e silenciosa exclusão social. Quantos negros vemos nos partidos políticos e com representatividade na Assembleia da República? Quantos negros têm a oportunidade de ser pivôs, comentadores, jornalistas? Educadores e professores universitários? E quantos currículos de negros são postos de parte, automaticamente, nas empresas?

O estudo Ser negro na União Europeia, da Agência para os Direitos Fundamentais, em 2018, revelou que “a população negra na União Europeia enfrenta dificuldades inaceitáveis em coisas tão simples como encontrar um sítio para viver ou um emprego digno devido à cor da sua pele”. Trinta e oito por cento tinham grande dificuldade em pagar as contas — o segundo valor mais elevado dos 12 países analisados! Mas falta mais informação e actualizada. A Constituição portuguesa não permite a recolha de dados com base na raça, etnia ou cor da pele. Não teremos perguntas sobre a composição étnico-racial da nossa sociedade nos Censos de 2021. Urge realizar estudos que permitam avaliar a realidade, a desigualdade e a discriminação racial existente e, agora, o impacto da covid-19 junto destes cidadãos e cidadãs — para que se possam dar respostas políticas públicas assertivas.

Só não usem como estratégia “dar visibilidade aos negros” apenas porque agora fica bem na foto. A representatividade, que tanto queremos e exigimos, vai muito além disso. Somos negros, sim! Somos competentes. Milhares de nós altamente qualificados e com provas dadas.

Enalteço o facto de grupos de trabalho, organizações e projectos sociais anti-racismo em Portugal estarem a organizar-se e a crescer nos últimos meses. O reforço e a desburocratização dos apoios do Estado a estas organizações que estão no terreno a apoiar famílias; a segurança redobrada na protecção dos cidadãos que estão em profissões mais vulneráveis, como equipas de limpeza em clínicas, empregadas domésticas, comércio (e que uma grande fasquia é composta por mulheres negras) — eis algumas medidas urgentes a ter em conta. Que os nossos líderes deixem de tomar decisões apenas a partir do conforto das salas de reuniões, mas sim a partir do terreno e de um verdadeiro sentimento de empatia e envolvimento com a comunidade.

Curemos todos, brancos e negros, mulheres e homens, estes males, buscando o talento de todos e de todas. Já que a covid-19 nos fez sentir desconfortáveis e, talvez por isso, mais atentos aos que sempre viveram assim, sejamos a mudança que queremos ver no mundo. Chamemos a nós a responsabilidade pública e individual. Perante as várias causas sociais de inclusão e igualdade. Nós, jovens, sabemos que se esta mentalidade mudar não há 100 oportunidades… há milhares.

Se nos fecham uma porta, abrimos as janelas. Temos no sangue a resiliência dos nossos heróis africanos, que lutaram para que hoje fôssemos livres. Então, que façamos da resiliência e espírito empreendedor inato motores de mudança. Unir as vozes para protestar, sim, mas com planos e directrizes claras de mudança com propósito.

Como disse recentemente Michelle Obama, para muitos de nós, não importa o quanto trabalhamos, há barreiras estruturais trabalhando contra nós, tornando o caminho mais longo e difícil, mas não impossível.

Canalizemos essa raiva, movidos pela esperança. Sejamos influenciadores de mudança, não apenas nas ruas, mas em todas as esferas de poder. Com honestidade, integridade e compaixão, criemos oportunidades neste futuro de união para todos e todas: a vacina para esta pandemia racista.

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