O que é hoje escrever (sobre arquitectura) num tempo de leitores-consumidores encantados pelo impulso visual, pelo átimo gráfico rapidamente “scrollado” que trai instantaneamente a memória? Quem se lembra da imagem de há dez segundos que os dedos, instintivamente, fizeram desaparecer? Na pandemia, temos todo o mundo no bolso – mas, por acaso, a arquitectura não. Diante disto, insistimos, através da memória.
Em Março de 2012, Jorge Figueira, crítico de arquitectura desta casa, escrevia um texto belíssimo intitulado Escrever arquitectura, onde sintetizava um percurso mais ou menos coreografado da condição da arquitectura-escrita. Por essa altura começava também o Inverno do meu descontentamento. Um desencanto pela prática da arquitectura, exercida sobre a escassez e a expectativa frustrada do meu desejo “saturado e obsessivamente autoral”, como dizia Pedro Barroso.
Perdoem-me já me ter socorrido da nota autobiográfica mas, para o caso, há-de ter a sua relevância. E, já agora, permitam-me uma outra inconfidência: para que escrevem publicamente os arquitectos sobre arquitectura? Para aliciar clientes potenciais para si, para os seus pares e para a própria disciplina (além de outros recados para dentro). Parece-nos, contudo, inevitável, nesta tipologia de escrita, o recurso a uma certa necessidade de extra-erudição na palavra que quer falar de espaço. Nesta perspectiva ainda narcísica de arquitectura enquanto virgem-branca, o arquitecto-escritor tem escolhido abusar de tiques de pretensioso virtuosismo técnico-poético e respectiva demonstração laboriosa do domínio lexical onde é versado (tal como esta, mea culpa) em detrimento de uma comunicação autêntica, mas sedutora, a mesma que usa na mesa de jantar informal socorrida de citações, referências e (as) outras histórias.
Se tudo (na escrita) é autobiográfico, como nos relembra Saramago, pode a escrita de arquitectura também o ser, criando imagens mentais de desejo a quem nos ouve, através das nossas memórias no espaço? Talvez, como o fez, por exemplo, Aldo Rossi na sua ironicamente intitulada Autobiografia Científica, onde nos lega sedutoramente a sua memória da maneira como o nevoeiro dança pela arquitectura. Porque a arquitectura é (também) sobre o tempo e o tempo, no espaço. O tempo cronológico e o tempo meteorológico, ambos deficitariamente absorvíveis em alturas como esta, preferencialmente apegada à clausura.
Mas como se escreve sobre o espaço? Diz-nos Figueira que “escrever sobre arquitectura continua a ser um exercício particular: porque não se pode socorrer da candura do pop, da liturgia do cinema, do jargão da teoria de arte, da poesia da ciência política”. É quando a arquitectura absorve o que a toca (e toca tanto) que se torna mais sedutora ao nosso leitor-consumidor, beneficiando da sua tendência transdisciplinar. Nada de ensinar a ver ou a fazer arquitectura — não aborreçamos o nosso espectador. Depois de reflectir sobre o objecto e o objectivo, o evento, a efeméride e a polémica, falemos-lhe apenas da nossa paixão pelo espaço e das tantas dúvidas e desejos que este (ainda) nos oferece. É preciso que a escrita mastigue incessantemente a pergunta de John Pawson e encontre a melhor forma de a devolver ao nosso espectador-cliente: porque é que me sinto melhor num espaço do que noutro? Caro leitor-cliente, se não sabe, não se preocupe. A função primeira da nossa disciplina é descobri-lo consigo.
Escrever sobre arquitectura pode ser, afinal, uma tarefa ingrata que exige exposição íntima, mas não privada, como diria Pedro Mexia. Em tempos de instagramers e influencers, caberá ao arquitecto-escritor expor-se a si e à arquitectura com a mesma quasi nudez sedutora de um bailarino dentro do nevoeiro. A nossa autobiografia e a dupla dimensão do tempo será afinal tudo o que precisamos de conhecer para escrever (ou dançar) na arquitectura?